terça-feira, 5 de maio de 2015

A Outra Linha

Deus do céu, quem diria que tudo isso começou com uma simples brincadeira entre amigos? Tudo ia tão bem à minha vida, e me revolta o fato de nada disso ter lógica. Uma brincadeira estúpida de um monte de barbados bêbados, e não tinha nada de perigoso. Era só um telefonema para o próprio numero, e nada mais do que isso.
            Eu tinha vinte e três anos quando sai da casa dos meus pais. Eu trabalhava desde o final do colégio, tinha já um curso técnico e estava estável em minha vida. Mas deixe-lhes dizer, enquanto me há um pingo de sanidade mental, que desde os meus doze anos de idade eu venho mudando minha personalidade. Antes, eu era uma criança alegre, obediente, dita inteligente e que vários adultos da época gostavam de mim, mas isso começou a mudar.
            Eu passei a ser um pouco mais recluso, muitas vezes cancelando muitos compromissos com meus amigos para ficar em casa jogando vídeo-game ou lendo. Nunca gostei de estudar, mas nas matérias que eu tinha interesse, ninguém era melhor do que eu. Eu tinha poucos amigos, mas quase todos eles eu guardei até pouco tempo atrás, e parte de mim morria de vergonha e inveja que quando aos quatorze anos, vários deles diziam sobre seus casos com meninas, e quando era indagado sobre isso, muitas vezes ou ficava quieto ou mentia. A mentira sempre foi uma grande aliada minha contra isso, mas nunca inventava grandes historias para não levantar suspeitas, apenas o suficiente para ter minha própria consciência tranqüila.    
            Mas nunca se consegue mentir e enrolar os pais por muito tempo, e isso só se aprende quanto mais você acha que está indo bem. Eu dizia que estava estudando e indo bem na escola, e quando vinha o final do ano, eu estava quase reprovado. Mentiras que todo adolescente faz para proteger suas altas quantidades de horas diretas na frente do computador ou do vídeo-game, e depois de certa maturidade mental, você percebe o quanto foi burro e ridículo. A base dessas mentiras, eu consegui ficar com uma garota pela primeira vez aos meus dezesseis anos de idade, e ao contrario do que eu imaginei, não foram as mil maravilhas do que todos os meus amigos disseram. Não tinha duvidas quanto a minha sexualidade, mas não era algo de tão estonteante e vigorante quanto eu imaginei que fosse, era apenas você trocando babinha com uma pessoa do sexo oposto para se sentir membro do seu grupo social e ter um pouco de falsa autoconfiança.
            Pelo fato de eu ser recluso e preguiçoso, os meus pais haviam adotado um bordão que era citado aos berros: “Você nunca faz nada”, “Está sempre dentro desse quarto”, “Só eu que trabalho nessa casa”, e outro monte de lixo verbal que se escapa da boca dos pais quando os filhos ainda são jovens e querem se descobrir. Até entendo que naquela época eles estavam corretos quanto as minhas atitudes, mas logo após a escola isso mudou.
            Quando você recebe o seu diploma no final do ensino médio, você acha que tudo será as mil maravilhas, pois finalmente acabou a escola, mas a realidade é que você se sente pesado. Você de certa forma não consegue digerir a idéia que a sua moleza acabou e que vai finalmente começar a ter inúmeras responsabilidades. Com isso, as pessoas podem adotar duas posturas, ou enrolam os pais por mais um tempo até conseguirem entender isso, ou entram em desespero e começam a querer se “estabilizar” o mais depressa possível. Eu fui o segundo, e nessa época que você começa a fazer um milhão de planos e em certo ponto todos eles parecem ser inviáveis.
            No final das contas, o que eu fiz foi começar um curso técnico e trabalhar como aprendiz em uma loja. Durante esse período, eu jogava e ficava no computador só quando podia, que eram raras ocasiões, e meus pais me pegavam justamente quando eu “podia” ter algum lazer com aqueles mesmos bordões de antes. E isso irrita qualquer pessoa que já tem várias coisas na cabeça, pois por mais que você comece a ajudar nas contas de casa e esteja começando a construir a sua vida, você ainda é tarjado como alguém que é um vagabundo? Isso foi começando a me irritar, e cada vez mais eu ia me estressando com eles, a ponto de que eu me obrigava a ficar fora de casa nas minhas horas livres para não precisar ver o rosto deles, mesmo que eu odiasse sair para fazer coisas de “jovens comuns”, como beber e ir para balada.
            Quando me formei em meu curso, compareceram meus poucos amigos e meus pais. O sorriso falso no rosto deles me enojava, mas como um bom mentiroso que era, também sorri. Naquele momento, o que eu mais queria era procurar um emprego na área onde eu tinha cursado e um apartamento para sair da casa dos meus pais. Quando consegui esses meus dois objetivos, eles pareciam surpresos ou até mesmo chocados ao saberem que eu estava partindo. Eu senti muita vontade de vomitar em cima deles tudo o que estava embrulhando o meu estomago por todos esses anos, mas apenas disse “tchau” e fui embora.
            O fato também é que a vida é muito estranha quando se sai de casa em um momento de raiva, pois muitas vezes você se pergunta se o que fez foi o certo, será que você não fazia nada mesmo, dentre várias outras coisas. Mas como tudo, você acaba se acostumando e é pouco estranha essa sua liberdade que você conquista. Por mais que você ache que planejou tudo, que tem seu dinheiro contado, sempre lhe vem alguma surpresa, e você ai começa a sentir o peso da vida adulta nas costas. Como disse antes, você se acostuma, mas essa liberdade é tão “grande” que nem sempre se sabe o que faz. Uma analogia que fiz comigo mesmo foi que eu era como um cachorro correndo atrás de um carro, eu não saberia o que faria se pegasse um. Eu havia pegado um carro, e não sabia se mijava nas rodas, ou roia o estofado, se me abrigava da chuva nele, eu não sabia de nada, era só eu sozinho em um apartamento com um emprego, que por mais que eu gostasse, sabia que não conseguiria agüentar por muito tempo. Para ser honesto, eu odiava meu emprego. Eu só ficava nele porque o salário era bom para se viver sozinho e eu queria sair da casa de meus pais. Muitas vezes eu fiquei me perguntando sobre o que eu havia feito, e se foi certo, mas acima de tudo, eu me perguntava o porque eu estava nesse mundo, se eu tinha um emprego que odiava, estava sozinho e sempre que eu encontrava meus amigos toda novidade que eu tinha para contar era as novas mentiras e ilusões que eu havia criado nas noites que eu não conseguia dormir.
            Certa noite eu os convidei para vir a minha casa. Comprei alguns petiscos e eles trouxeram bastante cerveja e vodca. Acho que a única coisa de “um jovem normal” que eu faço é beber. Não me agradava o gosto amargo, ou cítrico ou até mesmo forte da vodca, a não ser se misturado com varias outras coisas doces, como refrigerantes e energéticos. O que mais me agradava era o efeito. Aquela tontura e aquela sensação de não precisar esconder nada de ninguém, de poder contar a mentira que fosse, a verdade que fosse, ninguém se importava. Todos estariam bêbados, e mesmo que não estivessem, não relevariam os assuntos de um rapaz alcoolizado.
            Mas eu não tinha nem sequer começado a me intoxicar, devido a minha constituição razoavelmente alta, quando um amigo meu teve a ridícula idéia de ligar para o próprio numero. Todos seguiram a mesma linha de raciocínio que a minha, que era completamente ridículo aquela coisa de ligar para si mesmo, pois o máximo que aconteceria era cair na caixa postal. Outro amigo acabou cedendo e sacou o celular. Discou o próprio numero e ficou quase um minuto com ele no ouvido para somente dar de ombros e rir da própria estupidez. Assim acabou que todos o fizeram, exceto eu. Era algo tão ridículo que nem mesmo iria discutir, apenas não iria fazer e pronto.
            Naquela noite, eu estava razoavelmente sóbrio quando todos foram embora. Limpei a sujeira que havia sobrado, coloquei tudo no seu devido lugar, esvaziei na pia o resto de vodca que havia sobrado e avistei meu celular. Tomei ele nas mãos e mandei uma mensagem para saber se eles estavam bem, mas não me lembro se obtive alguma resposta, apenas sei o que aconteceu em seguida.
            Rindo sozinho em meu apartamento, eu comecei a discar o meu próprio numero. Eu tentei me lembrar o porque eles queriam fazer isso, e em uma memória estranhamente embaçada, o que eu me recordava era que segundo o meu amigo, que havia sugerido isso e estava cursando rede de computadores, havia uma pequena probabilidade de que nós pudéssemos ouvir o que dissemos naquele momento vindo pelo próprio celular. Era uma coisa ridícula, por mais que ele desse razões técnicas para isso, mas eu fiz. Seria engraçado ouvir minha voz duplicada pelo celular.
            Mas logo depois do terceiro toque, o que aconteceu até agora eu não sei dizer o que foi.
            “O que foi?! Não vê que estou morto?!” disse uma voz que eu odiei ouvir. Aquela mesma sensação que todo mundo tem quando ouve a própria voz gravada, porque era a minha voz. Mas ela não estava gravada, e sim falando comigo. Desliguei a chamada em um reflexo rápido e meu coração começou a palpitar. Certamente, eu havia discado o numero errado e algum maluco atendeu, que tinha voz extremamente parecida com a minha. Minhas mãos tremiam enquanto eu ousava checar o numero que eu havia discado, e quase deixei o celular cair no chão quando, depois de conferir mais de quinze vezes, era o meu próprio numero que havia ali.
            Soltei um grito de pânico quando meu celular tocou logo em seguida e o mesmo caiu de minha mão tremula. O apanhei com um nó na garganta e cai sentado no sofá, com as pernas bambas, quando conferi o numero que me ligava. O meu. O meu próprio numero estava me ligando e eu não sabia o que diabos estava acontecendo.
            Atendi e o levei levemente a meu ouvido, tremendo e ofegante. “Porque você me ligou?! Você ainda se importa?! Eu estou morto, sua cria de vermes!” Minha voz do outro lado da linha rosnava. Ela era insana, mas não havia nenhuma duvida que era minha.
            Desliguei meu celular com rapidez. Caminhei apressadamente, olhando para os lados, para meu quarto. Fechei a porta rapidamente com um frio me subindo a espinha. Aquele ofego não me abandonava, e eu não parava de suar, mesmo fazendo frio. Demorei demasiadamente para pegar no sono, e quando o mesmo chegou, ele me trouxe aquela voz que era minha, mas de alguma forma era um rosnado enlouquecido. Deus do céu, o que diabos era aquilo?
            Acordei cansado, bastante irritado e com um pouco de dor de cabeça. Quando a razão voltou para mim, percebi que talvez eu tivesse bebido mais do que havia imaginado na noite anterior, e aquilo tudo foi fruto da intoxicação. Dei graças a Deus por ser domingo, pois achava que era segunda. Caminhei até a sala e meu telefone estava em cima do sofá. Não quis olhar para ele, e fui até o banheiro tomar banho. Uma vez meu padrinho havia me dito que não tinha nada melhor para curar a ressaca do que um bom banho gelado, e de fato ele tinha razão, porque eu odiava banho gelado. Fiquei dois minutos com a água fria caindo em meu corpo, então troquei para quente.
            Tive a leve impressão de ter dormido no banho, me deixando respirar o vapor quente da água. Senti como se a gravidade da Terra estivesse comprimindo meu corpo, que tudo ao meu redor era gigante e eu era apenas uma formiga. Por um momento eu esqueci de mim mesmo, até que eu senti aquele grasnado em meu ouvido. “EU ESTOU MORTO, SUA CRIA DE VERMES!” Isso me fez voltar à realidade e percebi que o chuveiro havia esquentado muito. O desliguei rapidamente e me sentei no chão. Minhas costas ardiam muito e eu não parava de ofegar. Sai do banheiro e fui até a sala. Com um pouco de hesitação, eu apanhei meu celular e o liguei. Enquanto o mesmo iniciava, eu decidir assistir um pouco de televisão. Eu só a tinha para jogar vídeo-game, mas naquele momento eu queria que tivesse algum barulho naquele apartamento.
            Meus amigos haviam chegado em segurança em casa, e eu estava navegando nas redes sociais. Às vezes uma tristeza e auto piedade me invadiam quando eu me sentia bem fazendo essas coisas. Parecia que era só isso que me dava prazer de verdade, e isso era ridículo. Coisas tão medíocres e fúteis me eram motivo de alegria. Lembrei que dia era, e percebi que provavelmente viria alguns primos meus para a casa de meus pais para comer um churrasco. Eu sentia muita falta desses momentos que eu era feliz e não sabia, e me corria de remorso para ir até lá. Acredito que eu seria bem vindo em suas mesa, mas eu tinha vergonha de aparecer até lá. Parte de mim queria que alguém se importasse comigo, que ligassem para mim e me chamassem para ir até lá.
            O telefone tocou e me escapou um grito.
            Nem mesmo vi quem me ligava, apenas o atendi. Meu sangue gelou quando aquele mesmo rosnado que (era) lembrava a minha voz ria do outro lado da linha. “Acho que nem vermes gostariam de se banquetear com a sua carne podre, seu resto de lixo.” Gritei e perguntei o que aquele imbecil queria. Outra risada seca. “Eu quero me deleitar com seu sofrimento. Não vê que estou morto?” Retruquei dizendo que se encontrasse ele, provavelmente ele estaria morto, mas recebi outra risada como resposta. “Pode apostar que fará isso, cria de vermes! Não vê que estou morto?”
            Desliguei o telefone e pus as duas mãos na testa. Eu peguei e fui até o registro de chamadas e tentei bloquear aquele numero, mas daí veio uma mensagem dizendo que eu não podia bloquear o próprio numero. Atirei o celular no sofá e me sentei logo depois.
            Naquele mesmo dia, meu celular tocara mais duas vezes, mas não ousei atender. Podia ser até mesmo o telefonema que eu sempre quis que meus pais fizessem, mas eu não tinha coragem de pegar o celular. Pude até mesmo ter tido um momento de coragem insana para confrontar aquele maluco, mas na verdade eu estava apavorado. Como que aquele infeliz havia conseguido me deixar tão perturbado assim? Não tinha certeza, mas aquela pergunta que ele sempre fazia me dava calafrios só de pensar. “Não vê que estou morto?” Era o que ele sempre dizia. O que queria dizer com isso? Deus do céu, eu estou levando a serio um maluco e conseguiu de alguma forma clonar meu telefone.
            Os dias seguintes foram bastante perturbadores. As vezes, quando eu estava no meio do trabalho com o celular na mão, navegando em alguma rede sócia ou algo assim, meu sangue gelava e engolia um grito quando o telefone tocava. E mais ainda quando eu via qual numero que era. As vezes, eu atendia e ouvia aquela mesma voz. Normalmente nós não gostamos da nossa própria voz gravada, isso é normal de qualquer pessoa, mas imagine começar a ter pânico dela? Eu descobrira isso quando resolvi aceitar um convite de sair com meus amigos e resolvemos gravar um vídeo. Não havia duvidas, aquele infeliz tinha a minha voz, e além do leve desconforto de ouvi-la na gravação, meu corpo se arrepiou todo também.
            Por conta disso, eu acabei por começar a ficar um pouco mais quieto. Normalmente eu gostava de conversar com as pessoas quando tinha a oportunidade, mas isso foi mudando. Lembro-me que uma mulher de mais ou menos a minha idade tentou puxar assunto comigo no restaurante onde almoçava. Tinha cabelos castanhos volumosos e olhos cinzentos. No começo, consegui manter um bom assunto, até mesmo esquecer que eu tinha pavor de minha própria voz, mas ai então o maldito telefone tocou. Verifiquei o numero e tudo começou a mudar. Fiquei inquieto, um pouco defensivo e até mesmo grosso com a mulher. A mulher levou na brincadeira na hora, mas nunca mais quis falar comigo.
            Mais ou menos nessa mesma época, eu comecei a me afastar dos poucos amigos que eu tinha. As vezes eu me encontrava com eles, mas sempre acabava sendo um inferno. Nunca fui um homem de discutir, mas comecei a ser. Aos poucos, fui me tornando uma pessoa bastante desagradável de se conviver e fui sendo deixado de lado durante as vezes que meus amigos saiam. Eu podia muito bem ir até lá e pedir desculpas para eles, e provavelmente eles aceitariam, mas eu sempre tive muita auto piedade. Eu queria que eles viessem até mim e perguntassem o que estava havendo, queria de certa forma ser cuidado, mas nada disso aconteceu.
            Certa noite, eu voltava para casa mais cedo. Percebi que era sexta feira e provavelmente eles estavam reunidos na casa de alguém, e isso me deu uma dor no coração. Também lembrei de meus pais, que naquele momento estariam tomando uma sopa maravilhosa feita pela minha mãe e eu poderia estar lá com eles, mas estaria em casa, comendo alguma porcaria industrializada e vivendo a vida dos outros através de uma merda de uma rede social.
            Ao chegar em casa, eu notei que as luzes da sala estavam ligadas, mas eu tinha certeza que as luzes estavam desligadas quando sai. Saquei e abri meu canivete. Adentrei o corredor a passos lentos e cautelosos, até que eu vi alguém no sofá. Eu perdi o ar quando vi aquilo, e minhas pernas ficaram bambas. Aquele homem tinha exatamente a minha altura, os mesmos cabelos castanhos volumosos, vestia-se exatamente do jeito que eu me vestia e usava os mesmos sapatos. A única diferença era que aquela figura tinha uma pele muito mais pálida que a minha e olheiras muito mais profundas. Parecia um fantasma de mim mesmo, uma visão de mim mesmo depois da morte, mas ali estava aquela coisa diante de mim.
            Ele abriu um sorriso psicótico para mim. Nunca gostei de mim sorrindo, pois eu achava minha boca feia e meus dentes um pouco tortos, mas aquela coisa não se importava. Ele sorria como um maníaco, e isso me deu o maior de todos os pânicos, pois aquele de certa forma era meu sorriso também. Indaguei quem era, e sua resposta veio acompanhada de uma risada aguda e rasgada. “As vezes é bastante difícil de saber quem nós somos. Não vê que estou morto?” Aquele cara certamente tinha a mesma voz daquela pessoa que me ligava, e certamente era a minha voz. Aquele seria um Duplo? Não, isso não existe. Aquela coisa parecia mais uma visão de mim mesmo.
            Perguntei como ele invadira meu apartamento, e ele dessa vez se deitou no sofá de tanto rir. Aquilo me deixava furioso e apavorado. “Essa é minha casa também, sua cria de vermes. Não vê que estou morto?” Indaguei um pouco gago, o que ele queria dizer com aquilo, e então sua expressão se tornou seria.
            “Isso.”
            Então percebi duas coisas que não haviam antes na minha sala. Uma delas era uma corda branca, com um nó de forca na ponta, presa e pendurada pelo ventilador de teto. Outra delas, era a pequena escada de alumínio que eu guardava na despensa. Ele subiu degrau por degrau, bem devagar e com o seu olhar serio para mim. Pensei em impedir, mas aquilo tudo parecia surreal demais para ser verdade. Laçou o pescoço no nó de forca e se deixou cair. Virei o rosto rapidamente, mas não pude deixar de ouvir o estralo de seu pescoço se quebrando. Nessa altura, eu já não sabia mais o que fazer. Meu pavor era imenso e achei até mesmo que tinha molhado as calças.
            Lentamente e com o corpo tremulo, virei o rosto para ver o cadáver pendurado na minha sala, mas a verdade é que havia e não havia um corpo ali. Fui até a minha despensa e vi que minha escadinha estava ali ainda, no mesmo lugar onde eu havia deixado. Quando retornei para a sala, o corpo desapareceu por completo. Eu não sabia mais o que estava acontecendo e decidi ir dormir, mesmo sendo demasiado cedo.
            Diferente dos últimos dias, esse meu sono fora bastante tranqüilo e eu acordei de certa forma revigorado, e não mais esgotado do que antes. Eu não sentia mais a auto piedade e tristeza de antes, parecia que tudo tinha sumido em um passe de mágica. Meu telefone não tocou pela manhã toda e eu estava com vontade de fazer as coisas. Algo dentro de mim estava diferente, eu não sabia o que era, mas tinha.
            Procurei meus amigos e pedi desculpas pelas minhas atitudes ultimamente. Como eu havia imaginado, eles aceitaram e saímos naquela mesma noite. Acredito que não fui só eu que percebera isso, mas eu não era mais a mesma pessoa. Normalmente eu era um cara bastante tímido nas baladas, tinha um pouco de receio de ir até as mulheres, mas naquela noite foi diferente. Eu estava com uma atitude que eu não estava reconhecendo e todos meus amigos ficaram surpresos da quantidade de mulheres que eu fiquei.
            No dia seguinte, liguei para meus pais. Eles me convidaram para ir até a minha antiga casa e comer um churrasco. Alguns dos meus parentes estavam lá e foi bastante divertido. Todos estavam notando minha mudança repentina.
            No dia seguinte, meu desempenho no trabalho fora muito melhor do que nos últimos dias. Eu encontrei no restaurante aquela mesma mulher de antes e comecei a conversar com ela. Por mais que eu gostasse de falar, eu tinha bastante dificuldade de conseguir manter um assunto interessante com as mulheres, mas dessa vez foi diferente. Eu não consegui contar quantas vezes consegui fazê-la rir, como eu tinha habilidade para dizer o certo na hora certa, e tudo com uma naturalidade imensa.
            De certa forma, eu estava bastante feliz com isso que estava acontecendo na minha vida, mas na semana seguinte tudo começou a ficar estranho.
            Começou quando me encontrava com meus amigos, seja na balada ou na casa de alguém. Eu comecei a exagerar bastante na bebida e eu começara a me transformar em uma pessoa, não desagradável como antes, nem extremamente agradável como eu estava, mas sim uma pessoa bastante impulsiva e que não pensava muito no que dizia. Com isso, aos poucos eles começaram a ter medo de mim, e tinham até certo receio de me terem por perto. Quando me relatavam o que eu havia dito na noite anterior, eu não conseguia achar aquilo ruim, tanto pelo fato de saber que eu estava alcoolizado, quanto pelo fato de eu gostar daquelas coisas que eu havia dito. Os relatos eram que eu argumentava que quando as pessoas iam para a balada, na verdade era tudo um grande rebanho de gado e nós, pessoa mais superiores, estávamos ali justamente para se banquetear da mais saborosa carne que o mundo podia oferecer. Outra coisa era sobre as redes sociais, pois eu dizia que todas as pessoas que expunham suas vidas na rede, como se pendurassem todos os órgãos internos em uma vitrine, na verdade estavam quase colando um aviso em suas testas para que um terrorista explodisse sua vida miserável.
            Eu não achava aquilo tudo ruim, era apenas o que eu pensava das pessoas, mas todos estavam bastante apavorados. O que lhes deixava com medo era o fato de que eu falava tudo com a maior naturalidade de todas, como se eu pensasse aquilo de verdade, e de fato pensava. Dessa vez, eles não chegaram a se afastar de mim, mas eu sentia o seu continuo desconforto quando soltava a língua, e isso me deixava muito irritado, e isso aos poucos foi se transformando em ódio.
            Eu havia dito que no começo eu havia me afastado de meus pais, mas naquele momento quem estava se afastando era eles. Eu na hora do churrasco, minha comida preferida, dizia que seres inferiores, como bois, porcos e humanos, deviam sempre virar comida para os mais superiores, como eu me considerava. Também cheguei a comentar algo de como a vida era gerada de uma forma nojenta, e era difícil de imaginar que viemos de um ato sexual. As vezes, me recusava a acreditar que para mim nascer, meu pai teve que comer minha mãe. Eu achava que pessoas superiores deviam ser geradas de outra forma, e não de uma maneira tão banal.
            Aquela moça do restaurante, como era muito educada, não me respondera com grosseria quando eu havia dito que todas aquelas pessoas ali em volta eram repulsivas, e que nós éramos gerados de uma maneira nojenta e asquerosa. A partir daquele meu relato, ela começara a me evitar mesmo quando eu tentava procurá-la, e isso me dava muito ódio. Eu odiava ser ignorado e aquela vagabunda imunda, que ia para a balada ser rebanho de consumo, estava me evitando. Isso era um absurdo, eu não podia ser ignorado. Chegou ao ponto que ela ameaçou chamar a policia e eu rira com desprezo.
            Depois disso, nem mesmo meus amigos conseguiram agüentar muito tempo meus assuntos diabólicos e repulsivos, e eu não agüentava mais suas expressões de medo que brotavam em seus rostos quando me sentava na mesa. Era algo ridículo sentir medo, e era mais ainda eles me ignorarem. Eu não seria ignorado e não sentiria medo como vermes que são!
            Em um momento de filosofia, quando estava sozinho em meu apartamento, percebi que não sentia medo de nada. Até que pensei se eu teria algum de morrer, e logo veio a resposta: “Claro que não”, respondi para mim mesmo com uma risada aguda. Mas essa semente de duvida brotava em minha mente, pois ainda não tinha certeza. Enfureci-me com minha própria duvida e decidi que iria acabar com ela. Fui até a despensa e peguei uma corda e uma escadinha de alumínio. Fiz um nó de forca e o pendurei em meu ventilador da sala, de maneira firme.
            Por um momento, me sentei no sofá e comecei a tremer. Eu ainda tinha essa duvida em minha mente, e estava apavorado de certa forma. Me estapeei varias vezes, com ódio de minha pessoa por sentir isso. Não era admissível que eu sentisse algum medo, eu não era um verme como eles.
            Nesse momento de fúria e medo, subi as escadas e lacei meu pescoço. Varias vezes pensei em descer o mais depressa possível, não querendo fazer isso, mas meu ódio era imenso. Quanto mais eu sentia medo, mais fúria crescia, e mais coragem eu criava para pular.
            Com um grito rasgado e insano, tombei da escada.
            Senti meu pescoço se quebrar e minha respiração trancar antes de minha vida se esvair do meu corpo. De fato, você sentia alguma coisa quando morria, mas não era nada que não se pudesse agüentar. Era bem rápido, como tirar sangue.
            Eu não sei como, mas depois de algum tempo eu acordei suspenso na sala. Minha visão era levemente turva, mas logo se adaptou a luminosidade. Senti ainda minha respiração trancada e o pescoço partido, mas nenhuma dor. Comecei a rir comigo mesmo, ainda suspenso, enquanto tentava descer. Me amaldiçoei por ter atado muito bem a corda no ventilador, pois precisei de vários e árduos minutos para conseguir me soltar.
            Quando cai no chão, eu ouvi um som bastante familiar. Era o som de meu celular tocando na minha estante. Tirei a corda de meu pescoço e caminhei até o aparelho, rindo baixo mas histericamente.
             “O que foi?! Não vê que estou morto?!”
            Ouvi o telefone da outra linha ser desligado rapidamente. Comecei a rir comigo mesmo enquanto procurava o numero no registro de chamadas e comecei a discá-lo novamente.

domingo, 26 de abril de 2015

Afogados e Mutilados

Rafael não estava contente em voltar para sua cidade natal, pois aquele lugar lhe dava tristeza. Mesmo já sendo homem feito e seu pai um senhor de idade, ambos não conseguiam se esquecer daqueles dias em que eles foram embora para Porto Alegre. Todos gostavam do interior, mas ele não trazia boas memórias para ambos. E agora estavam obrigados a ir até lá para resolver um problema que achavam que já estava morto e enterrado. Ou afogado.
            São Batista... Esse nome trazia a Rafael uma mistura de medo e repulsa. Ele tinha apenas nove anos quando seu pai lhe dissera para tirar água do poço pela primeira e única vez na sua vida. Ele sabia que era arriscado fazer isso, então sentia um pouco de ansiedade e orgulho de ser escolhido para buscar água, pois normalmente era seu irmão mais velho, Felipe, que fazia essa tarefa.
            Suas mãos relativamente pequenas seguravam o balde com toda a força que dispunha. Era de ferro, e já vazio era bastante pesado para uma criança da idade dele. Acreditava que ficaria ainda mais quando estivesse cheio de água, e só rezava para não derrubar toda a água no chão. O poço ficava a quase trinta metros da casa, em um lugar um pouco isolado do terreno da família. Segundo seu irmão, Felipe, aquele poço já existia antes da casa ser construída, e sempre havia água fresca nele. Nem mesmo seu pai sabia ao certo quando ele fora construído, mas a julgar pelo limo e jeito das pedras que calçavam as laterais do grande buraco, ele deveria ser muito antigo, provavelmente com mais de cem anos.
            Rafael sabia que precisava ser um balde de ferro para pegar água do poço, pois assim ele enchia mais facilmente e corria menos risco dele virar na subida de volta. Ele estava com bastante medo, pois sempre ouviu historias de crianças que caiam dentro de poços quando tentavam tirar água, pois se inclinavam demais e despencavam vários metros antes de morrer lentamente com a água invadindo seus pulmões.
            Ele tentava afastar esse pensamentos, mas infelizmente eles estavam vindo a tona, principalmente quando precisou inclinar o corpo para subir o balde a superfície. Rafael nem mesmo respirava, tanto pela grande força que precisava fazer, quanto pelo medo de acabar caindo dentro daquele buraco escuro e frio. Era assustador olhar para o fundo daquele poço, como se fosse subir alguma coisa rastejando pelas paredes e emergindo na borda, assim puxando crianças levadas para se afogarem lá.
            Pelo o que sobrava de corda, faltava pouco para o balde estar a sua disposição. Só estaria tranqüilo quando estivesse com ele nas mãos. Ele achava que estaria tranqüilo com ele nas mãos, mas na verdade o pavor só começou quando ele emergiu.
            Pesava muito, e Rafael precisou usar as duas mãos para carregar o balde de volta para casa. Seu pai lhe esperava com um sorriso quente na porta da casa, e o menino tinha orgulho de si mesmo. Em sua doce fantasia de criança, acreditava que em breve seu pai lhe levaria para atirar em algumas marrecas, ou talvez lhe orientar para caçar alguns capinchos. Sentia-se um rapaz agora que fora encarregado de tirar água do poço.
            Essas fantasias foram podadas com o grito de horror de pai ao pegar o balde.
            Rafael não percebeu que a água, que naturalmente era levemente amarelada, estava manchada de vermelho. Se fosse marrom, talvez eles pensassem que o poço havia secado e tinha somente água barrenta agora, mas aquela coisa no balde tinha cor de um vinho misturado com água. Seu pai, Manoel, a principio pensou que seu filho havia pegado água de alguma poça ou no açude ali perto, mas não tinha como. Acreditava no filho quando o mesmo disse que a água vermelha veio do poço.
            Rafael dando falta de seu irmão, foi quando seu pai e vários outros homens desceram com cordas no poço, temendo que o pior havia acontecido, e que de fato aconteceu. No interior do Rio Grande do Sul, os homens naturalmente têm muita honra e dizem não chorar, mas Seu Manoel não conseguiu conter as lágrimas de tristeza e remorso quando os homens tiraram seu filho, Felipe, de dentro do poço. O menino sangrava pelo pescoço e seu corpo estava inchado. Seus olhos parados e sem nenhum brilho, com a pele pálida e os cabelos, um pouco por cortar, molhados e grudados no rosto.
            Ninguém sabia dizer como que o menino havia caído dentro do poço, pois ele só buscava água quando o pai o ordenava, e naquela manhã quem fora buscar foi Rafael. A mãe deles, Iolanda, tinha certeza que os dois meninos estavam em casa na noite anterior, e ele não havia saído.
            A teoria mais provável era que o menino tinha acordado antes do galo cantar, percebera que não havia água e fora buscar. Era verão e fazia muito calor, portanto devia ter sede. A ausência de luz fez com que o menino tropeçasse e caísse no poço, quebrando o pescoço e se afogando por não conseguir se mexer,
            Depois desse episodio lamentável, a família de Rafael não conseguiu se manter naquele terreno por muito mais tempo. Cogitaram se mudar para outro, mas teriam que furar outro poço e tinham criado trauma. Depois de alguns meses, eles juntaram as fartas economias que tinham, venderam a casa e se mudaram para a capital.
            A vida para eles, por mais que tivessem algum dinheiro e Seu Manoel conseguiu um bom emprego em seguida, foi muito difícil na cidade de Porto Alegre. De fato, havia educação, saúde e segurança muito melhores do que em São Batista, mas por mais que as condições de vida fossem relativamente melhores, havia barulho. Muito barulho. E fumaça. Tudo parecia ser feito de concreto, e nada parecia natural, embora em Porto Alegre ainda tivesse uma farta quantidade de árvores.
            O barulho era em qualquer lugar. De buzinas, aglomerado de pessoas, fabricas, tudo. Parecia que na cidade grande não havia nada que não fizesse algum barulho desagradável, nem mesmo as pessoas. No interior, por mais que as pessoas das áreas mais urbanas dissessem que eles eram uns “grossos”, entre eles as pessoas eram bastante educadas e unidas. Na cidade, a pequena família recém chegada parecia ser estranha aos outros de quem soubessem de onde viessem, e ninguém em Porto Alegre era unido. As pessoas eram mal educadas umas com as outras, e se apegavam a pequenos grupos de amigos, e ninguém mais importava.
            Os primeiros tempos foram difíceis, mas aos poucos eles foram entendendo que na cidade as coisas eram bem diferentes por razões bastante justificáveis. Para começar, era uma cidade muito maior que São Batista, não teria como as pessoas serem todas bastante unidas, mas aos poucos perceberam que estavam errados sobre isso, pois quando precisavam de ajuda, todos eram bastante solidários como no interior. Não tanto quanto, mas eram também.
            Sem contar que Porto Alegre é uma das maiores cidades do Brasil, e um grande centro urbano e comercial. O barulho e o murmurinho eram comuns nesse tipo de lugar. Entendendo isso, e conhecendo melhor o povo, a família finalmente se sentiu em casa na nova cidade. Nunca se esqueceram de suas raízes, mas finalmente se sentiram bem vindos na capital.
            Durante trinta anos, muitas coisas aconteceram na vida deles. Rafael arrumara um bom emprego e se casara, mas essa união não durou mais que cinco anos, pois sua esposa veio a falecer decorrente de um câncer de pulmão. Era uma mulher muito boa, mas adorava seus cigarros, e cerca de duas carteiras por dia desde os quinze anos de idade lhe ceifou a vida com vinte e nove anos.
             A segunda a deixar o mundo fora Dona Iolanda. Mas dessa vez, o câncer lhe atacara o intestino. Todos estavam chorando no leito de morte da velha senhora, mas Rafael riu. As duas mulheres mais importantes para ele morreram por causa de câncer. A vida é muito irônica às vezes.
            Depois disso, Rafael nunca mais se casou e visitava seu pai regularmente. Eles eram muito ligados um com o outro, mas depois das duas tristes perdas, três na verdade, eles se tornaram muito próximos um do outro. Mais que pai e filho, eles eram amigos. Felizmente, ambos eram bastante saudáveis e tinham dinheiro. Manoel, por mais que estivesse perto de se aposentar, ainda trabalhava. Depois de tantos anos naquela metalúrgica, ele aprendera muita coisa que lhe evoluiu como profissional e pessoa, e tinha a filosofia de vida que um homem só adoece quando fica parado. Agarrado a isso, nunca parou de trabalhar mesmo beirando os setenta anos. Rafael era um homem inteligente, e com isso conseguira passar em um bom concurso publico. Ganhava bem, o trabalho era leve e tinha tempo para cursar sua faculdade de direito e visitar o pai regularmente.
            Embora eles dois tivessem boas condições de saúde, dinheiro e fossem muito próximos um do outro, eles eram bastante sozinhos. Com o passar do tempo, eles foram perdendo contato com os antigos amigos que fizeram logo depois dos “maus tempos de chegada à cidade grande”. Rafael tinha alguns colegas do qual tomava uma cerveja na noite de sexta, mas não eram exatamente pessoas com quem se podia contar. Por mais que ele não quisesse mais se casar, ele sentia falta de ter alguém do seu lado, por mais que tivesse seu pai.
Seu Manoel era um gaucho típico. Saia nas suas folgas para passear, conhecer pessoas novas, mas nunca mantinha as amizades que fazia. Não era porque ele não gostasse, mas ele simplesmente não queria mais se apegar a novas pessoas. Já perdera a esposa, um filho e a nora, não gostava da idéia de se tornar querido por muitas pessoas, acabar morrendo e deixando todas com a mesma dor que ele sentia em seu coração.
Era aniversario de Rafael, e seu pai lhe chamou para vir até a sua casa. Eles ouviram suas musicas prediletas, que variavam desde uma boa e velha musica tradicional gaucha, até um bom rock n’ roll e musica eletrônica. Beberam algumas cervejas e comeram um churrasco preparado por seu Manoel. Em todos os aniversários de ambos, eles costumavam sempre chamar algumas pessoas, mas naquele em especifico passaram sozinhos. Mas por mais que fosse assim, Rafael achou uma das mais agradáveis celebrações que ele teve. Sempre tinham assuntos para conversar e nunca ficavam de mal.
Mas daí então surgiu um telefonema que nenhum deles esperava.
Era um agente do governo lhes perguntando se eles eram donos da dita casa em São Batista. Eles informaram que já moraram lá, a casa fora vendida há mais de trinta anos. O homem lhes informou que desde então, aquele terreno tinha sido vendido para seis nomes diferentes dentro desses trinta anos, e fazia cerca de cinco que a casa estava completamente abandonada e sem ninguém com nenhuma relação aos antigos donos para os assuntos de posse da residência. Caso eles não quisessem ela de volta, o governo colocaria ela para leilão. Eles disseram que não tinham nenhum interesse nela, mas mesmo assim, como não havia mais nenhum “dono” e eles eram o mais próximo disso, eles precisariam viajar até a cidade para assinar os papeis.
Um calafrio subiu a espinha dos dois ao saber do que teriam que fazer. Acreditavam que passariam por alguma burocracia e teriam que esperar alguns dias, e como São Batista ficava muito longe de Porto Alegre, não era viável viajar varias vezes para lá. Por isso estavam levando roupas e dinheiro para ficarem vários dias.
Seu Manoel dirigia o carro, e Rafael olhava pela janela. Os estepes verdes e cheios de vida lhe trazia boas lembranças, que aos poucos eram invadidas pela imagem de seu irmão afogado no poço e pelo balde com água vermelha. Tinha apenas nove anos quando isso acontecera, mas as memórias estavam frescas em sua mente, o que lhe dava a impressão de que tinha nove anos novamente e estava sentindo a mesma angustia. Ele e seu irmão eram muito ligados, tanto quanto ele e seu pai eram nos dias de hoje. Talvez gostasse tanto do velho Manoel porque de certa forma lembrava o afeto que tinha por Felipe. Às vezes ele se pegava pensando em como seria sua vida se o irmão não tivesse morrido. Se iriam se mudar para Porto Alegre, ou o que quer que teria acontecido em suas vidas.
São Batista, por mais que estivesse bastante diferente do que de costume, ainda parecia a mesma cidade. O centro era parecido com Porto Alegre a cerca de dez ou quinze anos atrás, mas ao redor parecia a mesma coisa. Nas redondezas da cidade havia ainda casas feitas de barro e sapé, e os grandes campos de trigo, arroz e soja deslumbravam a periferia do centro da cidade, porém Rafael se lembrava que na década de 80, quando fora embora, o máximo que havia para ajudar os trabalhadores eram alguns tratores muito precários, e agora os campos eram maquinados com grandes colheitadeiras e tratores muito mais modernos.
            Chegava ser um pouco irônico o fato de haver casas de barro com maquinas tecnológicas trabalhando no campo. Lembrava-se que a sua casa era feita de barro e pau-a-pique, que ele julgava já ter sido destruída. O que deveria valer algum dinheiro e a razão dele e seu pai estarem ali era o terreno, que tinha um tamanho bastante considerável, pois não havia uma “casa” de verdade.
            Quanto mais Rafael olhava aquelas paisagens, mais vontade de ir embora tinha. Poderia ser aceitável para ele e a família viver nesse tipo de lugar há trinta anos atrás, mas naquele momento parecia diferente de tudo o que ele conhecia. Ele sempre acreditou que nunca tinha esquecido suas raízes, mas a verdade era que de fato ele havia. Tudo ali era estranho e hostil, e nada parecia aconchegante. Sentia falta do sinal de wifi para seu celular, de um lugar com menos mosquitos e mais urbanizado.
            Seu Manoel não sabia o que estava sentindo. Ele também achava que iria se sentir em casa, mas na realidade aquilo era um lugar estranho. Não era a mesma São Batista que havia nascido, se criado, casado, tido dois filhos e perdido um. Por mais que o povo continuasse basicamente o mesmo, ele achava que tinha mudado demais nesse tempo todo, a ponto de que sua terra natal fosse estranha para ele.
            Rafael se enganou quanto a sua antiga casa, pois ela estava lá de pé e quase do mesmo jeito que era antes. Ele se arrependeu de ter olhado no fundo do terreno, pois lá estava aquilo. A visão para aquele poço deu um grande calafrio na espinha dele, e seu pai precisou diminuir a velocidade do carro. As lembranças de ter tirado um pobre menino, que um dia fora seu filho, totalmente molhado, o corpo inchado e pálido e os olhos parados e sem nenhum brilho de dentro daquele poço... Ele não sabia o que fazer. Parecia que estava sentindo a dor da perda naquele mesmo momento e chorou. Rafael abraçou o seu pai pelos ombros e fez o possível para consolar seu velho. Ele tinha perdido a esposa, a mãe e o irmão, mas nunca teve filhos para se colocar no lugar dele. Leu uma vez que quando um filho perde um dos pais, ele sente perder sua mortalidade, mas quando um pai enterra um filho, sente perder sua imortalidade.
            Depois que Seu Manoel se recompôs, o velho avistou ao longe um velho amigo de infância. Ele foi obrigado a parar o carro para ir até lá dar um abraço. Um senhor calvo com um cavanhaque branco lhe cumprimentou com um grande sorriso no rosto. Rafael se perguntava como os dois haviam se reconhecido sendo que se passaram tantos anos, mas relevou. Ele se chamava Rodrigo, o que Rafael achou curioso, pois “Rodrigo” parecia um nome bastante jovial, e era estranho vê-lo em um senhor de idade avançada. Rodrigo e Manoel ficaram conversando por poucos minutos, até que o velho percebeu que precisava ir embora. Ele convidou os dois visitantes de São Batista para um churrasco no piquete, que Rafael tinha uma vaga lembrança de qual se tratava, que ocorreria naquela mesma noite. Ambos aceitaram com muito entusiasmo. Mesmo eles comendo fartos e deliciosos churrascos em Porto Alegre, no interior ele era diferente. Muito mais gostoso e tradicional, a carne era sem nenhum conservante e o único tempero era o bom e velho sal grosso. Lhes deu água na boca só de imaginar.
            Já era de tarde, e os dois foram até a prefeitura ver qual burocracia eles precisariam passar para poder tirar aquela casa de suas vidas. Rafael suspirava fundo, pois como cursava direito ele sabia que situações assim teriam uma burocracia muito mais trabalhosa e exaustiva do que de costume. Gostava dessa área, mas odiava essa “necessidade de burocracia desnecessária” que havia no Brasil, pois em cerca de 80% dos casos, só servia para atrapalhar a vida das pessoas. Quando chegaram lá, foram informados que o oficial de justiça só estaria disponível na segunda feira, e isso lhes rendeu uma frustração muito grande. Por mais que fossem em uma festa rever os conhecidos naquela noite, ainda não gostavam de São Batista, e saber que eles teriam que passar um final de semana a toa ali já começava a lhes irritar.
            Conseguiram um bom hotel e não muito caro. Tinha ar condicionado e camas confortáveis. Ficaram lá e dormiram um pouco até a hora do churrasco. Rafael estava feliz de ir, mas nunca vira tanta empolgação em seu pai. Seu Manoel se sentia revigorado de ver seus velhos amigos, e por mais que agora fosse um homem da cidade grande, isso lhe daria a energia necessária para agüentar os dias árduos que viriam a seguir.
            O que mais Rafael viu no piquete foi homens com cabelo branco e bem humorados. Seu pai fora cumprimentado um por um, todos lhe saudando boas vindas e lhe oferecendo um lugar na grande mesa. Rafael de certa forma estava feliz pelo pai, pois nunca havia o visto rir e sorrir com tanto vigor quanto agora, mas ele estava se sentindo perdido ali. A cidade lhe mudara muito, e tudo aquilo era hostil para ele, por mais que fosse muito bem vindo entre aqueles homens.
            Depois de duas horas de um incomparável churrasco e de algumas cervejas, alguns dos homens mais próximos de seu pai começaram a ficar com a língua mais solta. Rafael não era de beber muito, e estava prestando bastante atenção no que eles falavam, pois o assunto era sobre a casa e aquele terreno.
            “Tchê Manoel, tu escapou de uma bronca das feias”, disse um velho com um volumoso bigode branco. “Aquele terreno passou por uns momentos bem ruins quando tu e tua família foram embora pra capital.” Seu Manoel indagou o porque, e quem continuou foi Rodrigo. “Aquele povo que tu vendeste a casa não durou muito. Eles tinham um filho já rapaz que tinha problema de cabeça e a coisa pirou depois que se mudaram pra ali. O rapaz gritava a noite toda, não deixava ninguém dormir. Não parava nem quando o pai dava uns bons relhaços no lombo. Ele só gritava que era muito fundo, escuro, mas que ele precisava entrar no poço. Foi assim por quase um ano e meio, até que certa noite ele não gritou. Todos dormiram feito pedra, e na outra manhã não achavam o guri, até que o pai foi tirar água do poço e ela tava cheia de sangue, do mesmo jeito que o teu filho buscou a água quando o teu mais velho morreu. Lá foi nós e achamos o rapaz louco no fundo do poço. Aquilo me caiu os butiá dos bolsos, pois era uma baita coincidência.” Rodrigo deu mais um grande gole na sua cerveja e quem continuou foi o mesmo velho de antes.
            “Depois disso, o pai vendeu a casa e todos foram embora pro Uruguai. A outra família era muito bonita, uma mulher quarentona de olhos azuis e cabelos louros, o homem também quarentão, careca, e forte que nem boi de cruza. Tinham dois filhos já rapazes fortes e uma menina linda, daria uma prenda que os rapazes iam briga de facão nos bailes. Os dois mais velhos certo dia começaram a se fresquear na frente de um trator, até que os dois caíram porque as raízes estavam altas. Eles não conseguiram sair a tempo, e o trator passou por cima deles. Aquela plantação de soja teve uma baita mancha vermelha e os guri ficaram parecendo boi num matadouro.” O velho parou um pouco, secou uma caneca de cerveja e continuou. “A mocinha do casal, depois de alguns meses, começou a andar enquanto dormia. Todo dia, os pais a viam andar em direção ao poço, até que uma noite eles dormiram demais e ela caiu lá. O homem não agüentou, e deu um tiro de espingarda na cabeça no mesmo dia.”
            Somente de saber aquela parte, Rafael estava ao mesmo tempo, fascinado e chocado. Até o momento não sabiam o que pensar. Outro homem, que ainda conservava alguns tufos de cabelo preto, continuou.
            “Depois disso, ninguém soube da mulher. Um casal comprou a casa logo depois, mas não ficaram nem um ano, pois diziam que aquele lugar tinha coisa ruim, que ninguém tava seguro ali por perto. Depois disso, a casa ficou parada por quase três anos, até que outra família comprou. Essa chegou a durar quatro anos, mas daí o mais novo que devia ter uns quatro anos, certo dia ficou com uma doença que nenhum curador nosso sabia dizer o que era. Nisso, os velhos se obrigaram a ir até uma cidade grande com posto de saúde ou hospital, pra ver o que era que o guri tinha. Eles ficaram quase quatro dias fora, e quando chegaram, o mais velho, que devia ter uns vinte anos e era meio desengonçado, caiu dentro do poço e morreu. Tempos depois, o mais novo voltou a ficar doente, mas dessa vez não deu tempo de fazer nada, pois o guri acordou morto. Essa família passou a casa pra outra gente, mas não chegou a vender, e esses daí não duraram muito antes de ir embora.” O velho se levantou em direção a churrasqueira, pois um homem relativamente mais jovem, havia o chamado. Rodrigo prosseguiu.
            “Depois disso a casa ficou parada mais um tempo até que foram pra lá um velho com a filha e os dois netos. Eles viveram bem felizes lá durante uns dois anos, até que uma noite o velho enlouqueceu. Saiu gritando pelos campos afora e ninguém viu ele por três dias. Quando voltou, o velho pegou o facão, matou a filha e os netos, arrastou o corpo deles pro meio das plantações, voltou e se jogou no poço.” Ele fez mais uma pausa para a cerveja. “Depois disso a casa ficou parada. Veio varias vezes oficiais de justiça, até que te encontraram em Porto Alegre. Dizem eles que não tem mais nenhum ‘dono’ da casa, então ela é tua e tem que decidir o que fazer.”
            Seu Manoel ficou apavorado com aquele relato, mas como já bebera um pouco, o seu pavor foi amenizado. Ele indagou o que o povo estava comentando a respeito daquele lugar. Rodrigo deu de ombros. “Alguns dizem que depois que o teu guri morreu, aquele terreno e aquele poço ficaram ruim de se viver. Outros dizem que é por causa do Coronel Peixoto.” Rafael ergueu uma sobrancelha e perguntou quem era esse. Quem lhe respondeu foi o velho do bigode. “É uma lenda que tem por aqui desde que acabou a escravatura. Durante a escravidão, muitos coronéis conseguiram acumular muito ouro e diamantes. Como havia os impostos, eles enterravam os tesouros pelos campos pra esconder do governo. Cada coronel tinha seu jeito de marcar o lugar. Uns colocavam uma cruz, outros enterravam entre duas arvores, outros perto de uma grota, mas o Coronel Peixoto tinha uma maneira muito estranha de marcar seus tesouros. Ele antes de enterrar, procurava alguém que estivesse sozinho e matava, depois ia pro meio do campo, enterrava o ouro e colocava o corpo do pobre coitado por cima. Depois que a escravatura terminou, ele foi buscar os ouros, mas ele nunca mais achou nem os corpos, nem as ossadas, e com isso ele vagou por essas terras durante anos a fio, cada dia enlouquecendo mais e mais, gritando pelos campos e quando encontrava um infeliz sozinho, ele ia lá e matava com o que tivesse na mão. Quando o velho não pode mais agüentar de tanto parafuso solto, ele pegou e se matou dentro de um poço. Dizem que quando ele caiu na água, ele começou a rir feito um condenado, até que ele morreu. Pelo o que dizem, ninguém se deu ao trabalho de tirar o corpo dele de lá.” Rafael indagou se o poço que ele se matara foi o do terreno em questão, mas Rodrigo deu uma breve risada e fez que não com a cabeça. “Meu rapaz, aquele terreno e aquele poço são muito antigos, mas não tanto assim. E isso é só uma lenda que os rapazes contam pros guris mais novos ficarem com medo de chegarem perto dos poços.”
            Depois disso, o assunto mudou tanto que Rafael não teve como perguntar mais coisas para aqueles homens. Quando viu que seu pai já estava ficando tonto, decidiu que era hora de irem embora. Todos os velhos foram abraçar Manoel, que estava muito feliz, embora chocado com aquela história. Rafael foi dirigindo para o hotel, e ficou com aquela historia toda na cabeça até a hora de dormir.
            E para dizer a verdade, até mesmo dormindo.
            Ele sonhou com seu irmão, Felipe. Ele andava sozinho em um grande pasto, caminhando na direção dele. Quando faltava cerca de cinco metros para o sorridente garoto chegar ao encontro de Rafael, o garoto parou. Seu olhar se perdeu e sangue escorreu pela sua boca. Rafael correu até ele, mas Felipe foi puxado para trás por alguma coisa invisível. O garoto gritou de dor, até que ele começou a ser arrastado pelo chão, até que mais adiante Rafael viu um poço. Felipe fora arrastado até o grande buraco escuro e foi puxado para dentro. Quando Rafael ouviu o som da água, o garoto começou a rir. “Venha marcar o tesouro!”, ele falava em um tom de brincadeira. Sem hesitar, e achando que tudo fosse uma brincadeira, Rafael sentiu um frio na barriga enquanto pulava dentro do poço.
            Acordou suando frio e ofegante. Suas mãos e queixo tremiam. Fazia muito calor, mas ele estava congelando. Foi até o ar condicionado e o desligou. Depois disso ele ficou apenas deitado, sem conseguir dormir, nem pensar naquela sensação de ter caído no poço.
            O fim de semana fora monótono, pois não havia nada para se fazer em São Batista. No final de domingo, Rafael decidiu ir até a casa e olhar novamente. Seu coração acelerou um pouco quando desceu do carro, e começava a escurecer. Ele não conseguia acreditar que um dia viveu em uma casa feita de barro, mas essa era a verdade. As paredes eram bastante fortes, com quase meio metro de espessura. A casa no geral estava bem maltratada e dava um pouco de pena de ver. Rafael se perguntava o que o governo faria com aquele terreno quando tomasse conta, pois se colocasse em um leilão que a casa era de barro, ninguém iria comprar.
            Rafael caminhou até o poço. Ele lembra que a borda parecia ser muito alta para ele quando era criança, mas naquele momento era pouco mais baixo que sua cintura. Se inclinou e olhou para dentro. Um vento forte bateu e ele sentiu um arrepio na espinha ao contemplar aquele grande buraco escuro. Era difícil de imaginar que um menino de apenas onze anos havia morrido ali, e mais difícil ainda de acreditar que varias outras pessoas também. Ele se perguntava se alguém tinha morrido ali antes do seu irmão, e de certa forma ele acreditava que sim. Aquele buraco negro era silencioso e sinistro, e mais os pelos da nuca de Rafael se arrepiavam ao olhar. Lembrou-se da frase de Nietzsche, “Cuidado ao encarar o abismo, ele te encara de volta”. Rafael tinha quase certeza que aquele poço o olhava, mas não sabia dizer por que ou como, mas sabia que ele estava fazendo isso. Quase tinha certeza. Lembrou-se do seu sonho, da sensação de ter pulado ali, e por um momento pensou porque não fazer isso? Talvez tivesse algo fascinante lá dentro, senão muitas pessoas não teriam morrido ao entrar ali.
            Afastou esses pensamentos enquanto dava três passos para trás. Aquele poço tinha algo de muito maligno, e Rafael agora sabia disso. Ele se perguntava por que nunca ninguém havia pensado em selar aquele poço, mas ai então olhou em volta e viu que não havia mais nenhum. Talvez aquele fosse o único poço em alguns quilômetros, e era menos trabalhoso ignorar aqueles fatos do que passar dias de trabalho para furar outro.
            Caminhou de volta para seu carro e dirigiu rumo ao hotel. Já era noite, e seu pai estava dormindo. No interior as pessoas dormiam muito cedo, e como não tinha absolutamente nada para fazer, foi dormir também.
            Rafael sonhou novamente com seu irmão. Ele estava parado na frente de um açude, com um pequeno caniço de taquara e um balde aos seus pés. Um homem vestido com bombachas caqui e uma camisa branca se aproximou por trás dele. O homem tinha uma faca estreita na mão direita e caminhava furtivamente. Felipe não se mexia, até que o homem o rendeu e cravou a faca entre as costelas do garoto. O homem então, que Rafael não pode ver o rosto por causa do chapéu, o arrastou por quase um quilômetro, até que jogou o menino sobre um monte de terra remexida. Assim que o homem foi embora, vários abutres desceram sobre o corpo do garoto e começaram a bicar sua carne.
            Rafael acordou, mas dessa vez não foi em um susto ou suando frio, e sim com uma grande inquietação. Ele estava com sono, mas não queria ficar na cama. Então se levantou cambaleante, e foi até o banheiro beber um pouco de água. Percebeu então que a água da torneira era levemente amarelada, e ele sabia que era água de poço. Tinha essa cor diferente, mas era pura também. Ao olhar para o ralo da pia, se lembrou da visão escura para o poço, e da sensação de ter ele lhe encarando de volta. Riu baixinho consigo mesmo e deu um soco bem fraco na borda da pia. Tudo ao seu redor estava lhe lembrando daquele maldito poço, e parecia que nada lhe dava sossego.
            Voltou para cama e dormiu sem sonhos até a manhã seguinte. No outro dia, logo de manhã, Rafael e seu Manoel estavam na porta da prefeitura para falar com o oficial de justiça. Uma coisa que lhes surpreendeu é que a prefeitura já tinha alguns planos para aquele terreno, e não teria tanta burocracia quanto Rafael imaginou. Talvez mais dois ou três dias e poderiam ir embora daquele lugar, e era o que ele mais queria. Nada ali lhe fazia bem, qualquer buraco escuro lhe lembrava aquele poço, e qualquer água que fosse levemente amarelada lhe lembrava a água de um maldito poço.
            E tudo ficava pior quando ele ia dormir, pois sempre sonhava com alguma coisa relacionada a poços ou o seu irmão morto. Até que na noite de quarta feira um sonho muito peculiar lhe invadiu o sono. Ele via seu irmão dentro do poço, desesperado e ferido. Ele tentava escalar a parede de tijolo maciço com algo volumoso nos bolsos, até que um homem emergiu da água. O pavor no olhar do garoto era algo que seguiria Rafael por toda a vida a partir dali. Era o mesmo homem que havia o assassinado no sonho anterior, mas dessa vez Rafael pode ver seu rosto. Tinha uma barba e cabelo por fazer, com vários fios grisalhos. Sua camisa branca estava levemente transparente por causa da água, e o chapéu de couro estava ruço e com as pontas desgastadas. Ele carregava um olhar que era uma mistura de emoções, e todas elas penetravam o coração de quem olhasse, mas sem nenhuma duvida era um homem que havia enlouquecido.
            Ele ergueu a mão e puxou um facão do fundo da água. Com a mão livre, agarrou Felipe pela camisa e o puxou com uma força impressionante de volta para a água. Ele ergueu o facão acima da cabeça e golpeou o pescoço do garoto algumas vezes. A água que antes era de um azul escuro tomou uma tonalidade carmesim por total e o homem começou a rir. Sua voz ecoava por todo o poço.
            Rafael acordou e se ergueu imediatamente. Pôs qualquer roupa e correu para o carro. Ele sabia que seu irmão precisava de ajuda, por mais que soubesse que ele estava morto a mais de trinta anos. Ele pensou em voltar varias vezes, mas não conseguia tirar o pé do acelerador. Deus, em que estava pensando? Que um homem maluco de uma lenda idiota teria assassinado seu irmão dentro do poço? Ele não sabia dizer, mas sabia que precisava ir até lá.
            Algo dentro dele achava que seria divertido e engraçado se atirar no poço.
            Ele pulou a cerca do terreno e caminhou até o poço. O céu ostentava belas estrelas, mas ele sequer prestou atenção nisso. Ele se curvou e contemplou o poço. Um grande buraco silencioso e solitário, e queria que ele entrasse. Rafael hesitou varias vezes, pois sabia que era loucura. Algo dentro de sua mente implorava para ele não fazer isso, mas de nada adiantava. Ele sentou na borda do poço e então lhe veio aquele frio na barriga, seguido pelo seu grito de desespero.
            Ele deve ter caído por menos de três segundos, mas para Rafael pareceu uma eternidade. Enquanto sentia a adrenalina lhe correr o sangue, uma forte dor correu pelo lado esquerdo de seu corpo. A água lhe afogou um grito de dor, até que em um gesto de desespero, Rafael nadou para a superfície da água, procurando oxigênio. A água era relativamente baixa, mas a dor não fazia ele ficar muito tempo de pé. Tudo isso fora embora, quando percebeu que de fato estava dentro do poço.
            Aquele lugar escuro tinha um clima pesado. Um ar macabro envolvia aquelas águas, e Rafael ficou em pânico. Tremia seu corpo todo ao imaginar todas aquelas pessoas morrendo ao cair ali. A primeira coisa que pensou era que a queda ou o afogamento os matava, mas o fato era que na verdade ele estava vivo. Com dor, tremendo de frio e medo, mas estava vivo.
            Rafael se sentou no fundo da água e sentiu algo do fundo. A principio ele achou que fossem pedras, mas eram muito achatadas e com relevos complexos. Ele ergueu um punhado daquelas coisas e lavou o barro com a água, e então o ar lhe saiu dos pulmões quando viu o que era. Brilhante e dourado, ali tinham um punhado de dobrões de ouro. Rafael começou a rir consigo mesmo com aquela descoberta. Enfiou a mão no fundo do barro e começou a pescar mais. Nesse momento, ele não sentia nenhuma dor ou sequer lembrou-se daquele clima macabro. Ele começou a catar todas as grandes e valiosas moedas que conseguia encontrar e pôs nos bolsos.
            Quando não conseguiu mais espaço no seu corpo para mais moedas, ele se levantou. A dor havia diminuído e pensou em escalar os tijolos maciços até a superfície. De fato, depois de uma rápida avaliação, percebeu que isso seria relativamente fácil. Não para uma criança ou para um velho, mas alguém da estatura dele conseguiria subir facilmente. Pôs a mão em um tijolo e percebeu que ele era bastante firme. Enquanto subia, percebera que precisava emagrecer, pois seria muito mais fácil se ele estivesse em forma. Ele ria consigo mesmo ao escalar.
            Mas ai então algo lhe agarrou com força. Rafael escorregou e caiu de volta na água, enquanto algo lhe segurava pelas roupas. Um desespero que ele não havia sentido em toda a sua vida começou a brotar em seu coração e gritou. Ele não conseguia ver o que era aquela coisa, mas ouvia sua voz. Era um rosnado pastoso e insano, e possuía uma força sobrenatural.
            “EU PRECISO MARCAR ESSE LUGAR!”, aquela coisa berrou. Rafael lutava para ficar com a cabeça acima da água, mas uma mão pesada lhe segurava com força. “EU PRECISO MARCAR PARA NÃO PERDER!” Aquela coisa rosnava em um grito gutural enfurecido, até que Rafael sentiu algo subir acima da água.
            Ele rezou para não ser o que ele pensava que era, mas de fato era um grande facão. A sua lamina era escura, rústica e com grandes manchas rubras. Em um ultimo ato, o homem abaixou a cabeça de Rafael na água e golpeou seu pescoço. A dor de antes era insignificante perto da que ele sentiu naquele momento. Uma ardência que descia por todo o seu corpo, e que seguia por jorradas de sangue. Depois sentiu outro golpe.
            Com isso, ele perdeu as forças e foi deixado na água. Sentiu todos os dobrões caírem de seus bolsos e a água invadindo seus pulmões. Uma mistura de emoções corria por seu corpo, mas Rafael não tinha nenhuma força para tentar reagir. Riu consigo mesmo, pensando em como a vida poderia ser irônica às vezes. Todos morreram pela tentação, inclusive ele mesmo, mas ninguém sabia até então do que. E agora que sabia, não podia fazer nada, a não ser ver a sua vida se esvaindo lentamente de seu corpo, enquanto seu sangue manchava a água do poço de vermelho.

quinta-feira, 5 de março de 2015

Nos Olhos do Gato

Eduardo soube desde sempre que amava historia. O passado da humanidade era um mistério delicioso para ele, e sua ambição por descobrir os segredos escondidos milhares de anos lhe dava motivação para estudar. Logo nos primeiros anos da escola, o conhecimento bastante resumido não era o suficiente para saciar sua sede. Ele buscava mais e mais sempre, o que levou a sempre ser um dos alunos mais esforçados e inteligentes de todas as escolas que freqüentou.
            Sua vontade de sempre querer saber mais sobre o passado da humanidade lhe levou a ser um garoto solitário durante toda a sua juventude. Vestia-se sempre com roupas de cores neutras, seus cabelos louros nunca tinham conhecido um pente e às vezes Eduardo nem mesmo passava suas vestes. No entanto, uma coisa que Eduardo cuidava sempre era para estar cheiroso, e se sentia mal se algum dia saísse sem passar perfume ou sem tomar banho. Talvez esse seu habito de sempre estar limpo tenha vindo também dos estudos, pois ele havia ficado chocado ao estudar sobre a peste negra na Europa e as conseqüências da falta de higiene.
            O pai de Eduardo era um empresário muito rico e sempre deu ao filho boas condições para estudar, e sempre agradeceu por isso. Sua mãe gostava do fato do filho ser muito inteligente e estudioso, mas Eduardo tinha certo sentimento de desdém por sua mãe, mas a circunstancia para isso era um mistério até mesmo para ele. Eduardo simplesmente sabia que tinha algo de errado com sua progenitora, mas esses pensamentos só lhe vinham à cabeça quando não estava estudando.
            Eduardo nunca foi uma pessoa socialmente ativa, pois sempre estava sozinho por vontade própria, mas muito de seus colegas de aula gostavam dele. Às vezes Eduardo achava que esse afeto devia se dar pelo fato que ele sempre os ajudava com as matérias da escola ou porque eles queriam ajuda, e isso o fazia pensar que não tinha nenhum amigo de verdade. Mas no âmago de Eduardo isso não fazia a menor diferença, pois preferia a companhia de seus livros e de seu computador.
            Ao entrar na pré adolescência, Eduardo começou a se questionar a respeito de sua sexualidade, pois simplesmente não conseguia sentir nenhum tipo de atração por meninas e nem por meninos. Era um garoto bastante instruído para sua idade, e tinha ciência de que se fosse homossexual, esse fato daria sinais nessa fase de sua vida, mas não foi esse o caso. Ele simplesmente não sentia nada por nada, o que lhe era bastante intrigante. Por mais que Eduardo fosse solitário, ele costumava sempre observar as outras crianças com um olhar bastante critico, algo muito incomum para um garoto de doze anos, mas ele gostava. O fato de acompanhar a distancia, como um caçador estuda a sua presa, lhe fazia se questionar sobre como talvez as outras crianças fossem inconseqüentes e mimadas, pois o fato de sempre estudar em escolas particulares lhe deu como companhia alunos bastante mimados e com pais que faziam todas as suas vontades, o que na precoce opinião de Eduardo, lhes fazia dar pouco valor as coisas.
            E assim ele cresceu, na companhia dos estudos e observando as pessoas. De tudo isso, nada lhe fascinava mais do que a historia. Desde as primeiras aldeias pré-históricas ao contexto histórico dos dias de hoje, essa grande linha do tempo cheia de reviravoltas e personalidades lhe era vista de algo mágico. Talvez um dos motivos que ele gostasse de observar as pessoas fosse porque Eduardo sabia que a Historia era escrita, vivida e feita por pessoas. Avaliando de longe talvez ele pudesse ajudar as pessoas no futuro com o que ele estava vivendo hoje. Eduardo era um jovem muito diferente dos outros.
            Assim que concluiu o ensino médio, ele conseguiu uma vaga facilmente na universidade federal de seu estado. Seu pai queria lhe colocar em uma particular, mas Eduardo acreditava que o ensino de uma faculdade federal lhe seria melhor. Por mais que não fosse de muita surpresa de sua família, Eduardo escolheu cursar história. Ele havia perdido a conta de quantas vezes fora importunado e questionado a respeito dessa decisão por seus parentes, sempre com argumentos de que ele deveria fazer algum curso que lhe garantisse dinheiro e um futuro mais seguro. Como um rapaz bastante educado, ele sempre tentava dar um jeito de não levar esse assunto a diante em reuniões de família, mas houve mais de uma ocasião que ele quase xingou todos os que estavam questionando a sua escolha. Às vezes ser filho de um pai rico tinha pontos bastante negativos.
            Mas logo no final do primeiro semestre, Eduardo começou a ficar agoniado consigo mesmo. Quanto mais ele estudava, mais duvida ele tinha, mas não quanto à matéria dada, e sim com a realidade dela.
            Como era um jovem analítico para os fatos, ele pegava todos os fatos históricos e os colocava em uma linha do tempo. Ele não se dava conta disso na escola porque era bastante resumido o que era ensinado. Eduardo acreditava também que seus colegas não estavam se dando conta disso, mas todo o contexto histórico tinha buracos que não se encaixavam com os outros fatos ligados. Por um momento, Eduardo achava que tudo o que ele mais amava era uma grande mentira, onde nada do que ele sabia era verídico. Para um jovem como ele, um fato como esse era como um soco na boca do estomago.
            Eduardo começou a estudar cada vez menos desde que havia tido essa compreensão. Em seu âmago, ele estava aos poucos perdendo seu interesse não somente em estudar historia, mas em cuidar de si mesmo. Começara a consumir alimentos industrializados, coisa que ele jamais fazia por cuidar de seu corpo. Criara uma conta em uma rede social, algo que ele mesmo tinha certo repúdio. Aos poucos ele parou de observar e analisar as ações das pessoas a sua volta, não dando muita importância para isso. O ápice de sua depressão foi quando ele começou a vacilar com a higiene do próprio corpo, nem mesmo se dando ao trabalho de escovar os dentes e passar perfume. Ele simplesmente não estava mais se importando consigo mesmo e com o que mais gostava. Não queria mais ajudar as pessoas no futuro com o que ele vivera no momento. “Vai ser tudo uma mentira no fim das contas”, pensava consigo mesmo enquanto comia salgadinhos navegando numa rede social.
            Em um desses momentos de apatia, algo naquela mesma rede social que ele desprezava lhe trouxe de volta o que ele era.
            “A história é sempre escrita pelos vencedores”, George Orwell. Isso o que dizia uma publicação. Eduardo não havia pensado nisso. Tudo fazia sentido naquele momento. Era obvio que a história estava errada em vários pontos, porque ela fora manipulada! Como que ele não havia pensado nisso? Eduardo percebeu pela primeira vez que fora um tolo.
            Naquele momento, ele se determinou a saber tudo. Ele iria atrás da verdadeira versão da história e iria expor-la ao mundo. Esses fatos antigos não seriam manchados por mentiras. O conhecimento ancestral iria ser revelado para as pessoas, e tudo ficaria claro.
            Eduardo voltou a estudar com ainda mais fervor. Abandonou os alimentos industrializados e retomou a sua dieta saudável. Tomava três banhos por dia, para compensar o tempo que ficou desleixado com a sua higiene. A única coisa que não fez foi apagar suas contas nas redes sociais. Havia percebido que elas eram uma ferramenta poderosa para ele, e seria ridículo não utilizá-las.
            Eduardo já estava no ultimo semestre de seu curso quando seu pai veio a falecer. Foi um choque enorme para ele, pois fora o homem que havia lhe dado tudo na vida e ele simplesmente morrera. Um remorso enorme tomou conta de Eduardo quando sua mãe lhe disse que ele estava com câncer pulmonar fazia dois anos e omitira esse fato do filho. Quando ele perguntou o porque disso, sua mãe lhe respondeu que ele escolhera isso para não lhe preocupar com isso, pois era um jovem genial e não precisava ter esse tipo de coisa na cabeça.
            Um nó se formou na garganta de Eduardo ao saber disso. Um dos maiores desejos dele era mostrar o seu diploma universitário para seu amado pai, um dos homens que mais lhe inspirava, e ele se fora antes dele se formar. Não pode evitar conter as lagrimas ao ir a seu velório e ver o cadáver do pai no caixão. Na verdade, Eduardo só havia entendido que ele se fora quando avistou seu corpo. Ele infelizmente não pode dar o orgulho que desejava ao homem que devia tudo o que era.
            Ao concluir a faculdade, Eduardo foi convidado a entrar em uma fundação por seus professores, onde eles viajavam pelo mundo em sítios arqueológicos e também eram especializados em documentos e linguagens antigas. Eles haviam visto em Eduardo o potencial que precisavam para os novos membros. Eduardo nesses anos de faculdade havia amadurecido, e também havia entendido que a sua maior ambição, de saber a versão correta da história, fosse muito “coisa de adolescente”, mas ainda assim ele não havia desistido dessa idéia. Apenas havia entendido os limites que esse caminho tinha.
            Por isso, ele aceitou o convite. A fundação era financiada pelo governo e ele teria um salário bom. Ele havia herdado uma boa parte do dinheiro de seu pai, que estava na casa das dezenas de milhões, então não se importava muito com o salário, mas sim em exercer o trabalho que parecia ser o melhor para ele. A fundação era composta a maior parte por professores universitários, homens que Eduardo julgava como “da alta”, e ser convidado para fazer parte logo depois de se formar foi uma honra. “Eu darei o meu melhor”, e era só nisso que ele pensava.
            Logo no primeiro mês de trabalho, foi solicitada a fundação que fosse até o Egito, onde haviam descoberto uma pirâmide escondida sob uma grande camada de areia que até então não se tinha nenhum conhecimento de sua existência. Foram recrutados Eduardo, outro rapaz um pouco mais velho e dois de seus professores. Eduardo estava um pouco nervoso, pois nunca havia viajado de avião, quanto mais ir para outro país. Ele tinha um bom conhecimento em egiptologia, mas acreditava estar sendo levado junto para adquirir experiência.
            Na véspera da viagem, Eduardo não conseguiu dormir. Não conseguia decidir se estava ansioso ou com medo de andar de avião. Sabia que estatisticamente era o meio mais seguro de viajar, mas ainda assim estava com esse receio.
            Ao chegar ao aeroporto, ele ficou ainda mais nervoso do que já estava. Cada passo, desde fazer o “check in” até esperar por mais ou menos uma hora na sala de embarque, fazia seu coração pulsar cada vez mais rápido. Estava se esforçando para não demonstrar medo perto de seus companheiros de viagem, mas Eduardo achava que eles estavam percebendo seu medo.
            Sim, Eduardo descobriu que o ele sentia medo. Se sentia um tolo por não conseguir entender exatamente do que, mas a idéia de estar a quilômetros de altura sobre o oceano não lhe era nada agradável. Talvez tivesse medo do avião cair, ou talvez de demonstrar o seu medo para seus companheiros, mas o fato era que estava apavorado.
            Ao se sentar na poltrona do avião, Eduardo achou que suas pernas tinham ficado moles e geladas. Tudo o que pensava era em sair correndo daquele lugar, mas isso não passava de uma idéia em sua cabeça. Ele não sabia dizer se era porque estava com medo, mas ele percebera que o vôo estava demorando um pouco, o que lhe deixou ainda mais nervoso.
            A aeronave finalmente fechou a porta de embarque e as comissárias de bordo começaram a passar as instruções de segurança. Aquela coisa gigantesca se movimentando fazia com que Eduardo prendesse a respiração e fechasse os olhos. Aos poucos estava deixando de se importar em demonstrar seu medo aos outros, porque a essa altura eles já haviam percebido o fato. A decolagem fez o seu coração parar por um segundo. Eduardo teve varias vezes a impressão que o avião estava caindo, e quase que conseguia ver aquela coisa gigantesca se espatifando no chão. O frio em sua barriga não lhe era agradável, e ele teve a impressão de sentir uma pequena lagrima brotar no canto de seu olho.
            O vôo durou cerca de dez horas, e quando aterrissou, Eduardo engoliu um grito. Ele teve a impressão de que aquela coisa não ia parar, e que em seguida iriam bater em alguma coisa. Mas então ela começou a parar, e ele suspirou fundo. Não tinha nenhuma crença, mas agradeceu a Deus por ter dado tudo certo. Era pavoroso demais, mas tudo havia terminado.
            O Egito era bastante quente, mas não era nada insuportável. Eduardo e seus companheiros iriam viajar em direção ao sitio arqueológico na manhã seguinte, e deviam levar cerca de seis horas de viagem do Cairo até lá. Eduardo não gostava muito de viajar de carro por tanto tempo, mas ainda sim preferia muito mais isso a andar de avião. Por mais que ele soubesse que estava estatisticamente errado, se sentia mais seguro em terra firme do que no ar.
            O sitio ficava perto de uma aldeia. Segundo o que lhes informaram, foi um grupo de crianças que descobriram uma ponta da pirâmide enquanto brincavam. A escavação estava bem avançada e em breve seria possível explorar o interior da pirâmide. A aldeia era um pouco peculiar aos olhos de Eduardo, pois as pessoas de lá eram um tanto curiosas. A pele deles era um pouco mais clara do que a maioria dos egípcios, e eles possuíam uma linguagem bastante culta para uma aldeia de nômades. O que era mais estranho era que a maioria deles eram velhos, porém tinha um numero considerável de crianças em relação aos outros. Eduardo se perguntava se aqueles idosos eram os pais de algumas delas, e de fato não duvidava que fossem.
            Eduardo estava observando a aldeia quando ele percebeu um gato lhe observando. Era todo malhado com grandes olhos cor de âmbar. Era de fato um gato muito bonito, mas era um fato estranho aquele pequeno felino lhe observando com tanto interesse. Um ancião de cabelos brancos se aproximou do bichano e lhe acariciou. Ele portava uma bengala e caminhava mancando.
            “Ele está vendo alguma coisa em você”, disse o velho na língua de Eduardo. Ele observou o ancião que parecia ao mesmo tempo lúcido e debilitado. “Os gatos enxergam o mundo dos vivos e dos mortos. Nos olhos dos gatos existe uma sabedoria maior que qualquer pessoa poderia conseguir em toda uma vida.” Depois daquele discurso, Eduardo estava quase certo de que aquele velho estava ficando gagá. Era um monólogo muito bom, não tinha do que discordar, mas parecia coisa de filme.
            Mas tinha algo dentro dele que acreditava nisso.
            O gato seguiu observando ele até a hora que seus companheiros lhe chamaram para adentrar a pirâmide. Eduardo estava ansioso pelo o que encontraria lá, mas estava ciente dos riscos que podiam ter no meio do caminho. Mas logo ao chegar à entrada, os arqueólogos não permitiram Eduardo e o outro companheiro mais novo adentrar. Ambos protestaram, mas não havia nada que fizesse os arqueólogos mudassem de idéia.
            Eduardo voltou frustrado para a aldeia, onde permaneceu durante a tarde inteira até que os arqueólogos e seus companheiros voltaram com alguns artefatos. Foram entregues a Eduardo alguns pergaminhos antigos, em um estado bastante debilitado, o que requereu bastante cuidado ao manuseá-los. Todos os pergaminhos eram bastante peculiares, pois sempre havia a imagem de um felino e dos olhos de um felino neles. Era bastante difícil de ser traduzido, mas não era impossível.
            Os outros artefatos não interessavam tanto Eduardo quanto aqueles pergaminhos. Talvez ali estivesse uma parte da historia que ninguém ainda sabia da existência. Emocionou-se quando percebeu que talvez estivesse no caminho para a sua maior ambição.
            Durante o resto da viagem, Eduardo apenas cuidou do armazenamento dos artefatos, pois a maioria deles seria estudada na universidade. E como ele não havia os seus livros para consulta, não conseguiria traduzir nenhum trecho só com o que ele sabia no momento. Fora essa tarefa e pelo fato de não poder adentrar a pirâmide, a viajem foi bastante entediante. O que tirava ele da apatia era aquele mesmo gato que lhe observava sempre. Havia varias pessoas desconhecidas na aldeia, então porque aquele bichano só estava interessado em Eduardo? E se fosse verdade que ele estava vendo algo nele? Se fosse, seja lá o que esse gato estivesse enxergando deixava Eduardo com medo. Não era algo normal que um gato, uma criatura tão respeitada e cultuada no Egito, ficasse tão interessados em algo sem algum motivo.
            A viagem de volta não fora apavorante quanto à primeira, mas ainda assim fez com que Eduardo ficasse com medo. Mas dessa vez, ele não estava preocupado consigo mesmo, e sim com os documentos que estavam sendo transportados. Caso acontecesse alguma coisa, uma valiosa parte da historia iria se perder e não havia nada o que fazer se isso ocorresse.
            Mas, como da primeira vez, tudo deu certo e ele chegou à terra firme, são e salvo. A única coisa que ele pensava naquele momento era ir até a universidade e começar a traduzir aqueles pergaminhos. Ele estava animado de certa forma, e não se sentia cansado de passar dez horas sentado em uma poltrona de avião.
            Mas ainda assim, o seu trabalho só começou na manhã seguinte. De fato, eram textos bastante difíceis de serem traduzido sozinho, e teve a ajuda de muitos professores mais experientes nessa tarefa. Mas Eduardo era um homem inteligente, e logo nos primeiros dias ele percebeu o padrão dos códigos e aos poucos, os textos iam sendo transcritos para uma língua mais acessível.
            Mas a revelação foi um pouco mais peculiar do que Eduardo esperava. Na verdade, aqueles pergaminhos eram instruções para rituais de magia egípcia. Ele achou estranho algo desse tipo estar dentro de uma pirâmide de algum faraó, mas se esse era o fato, deveria ter algum motivo. O mais frustrante era que apenas um estava completo, e a maioria dos outros estava intraduzível pelo estado deplorável dos pergaminhos.
            O ritual dizia que quem o realizasse, teria “os olhos de gato”, e seria capaz de enxergar dentro do “duat”, o que Eduardo sabia que na mitologia egípcia era o mundo dos mortos e dos deuses. O que ele não entendia era que, naquele ritual era necessário sacrificar um gato, e isso não era comum para a cultura egípcia, pois os felinos eram sagrados. Dizia também que aquele que realizasse o “ritual dos olhos de gato”, teria a sabedoria de um. Eduardo se lembrou do que aquele velho da aldeia dissera, que os gatos olhavam para os dois mundos e que tinham a sabedoria que ninguém em uma vida inteira conseguiria.
            Ele também se lembrou da parte dentro dele que havia acreditado nisso. Era obvio que aquilo era apenas um ritual tradicional de alguma parte esquecida do antigo Egito, e que aquele velho estava gagá devido à idade avançada. Eduardo sabia disso, então porque alguma coisa dentro dele estava acreditando naquilo? Ele não estava tentado a fazer aquilo, estava?
            Então se lembrou novamente da frase de George Orwell: “A história é sempre escrita pelos vencedores”. Se a historia fosse escrita assim, talvez os “perdedores” sabiam a versão correta dela, mas eles estavam mortos. Olhou para aqueles pergaminhos novamente. Se aquela coisa ridícula funcionasse, será que assim ele conseguiria a versão correta da história? Ao pensar nisso, Eduardo riu sozinho, de certa forma com vergonha de si mesmo por ter pensado esse tipo de coisa.
            Mas aquela mesma parte dentro dele que havia acreditado no velho da aldeia dizia para fazer aquilo, pois assim ele seria o mais sábio de todos. O seu riso foi diminuindo aos poucos até que ele observava aquelas instruções. “É claro que isso não passa de uma bobagem de um povo primitivo, mas se funcionasse eu talvez conseguisse toda a verdade. Eu teria a sabedoria de um gato, e poderia ajudar as pessoas no futuro.” Essa parte dentro dele acabou ganhando de sua razão, e ele decidiu que faria aquela coisa, não acreditando que estaria se rebaixando a fazer alguma coisa dessas.
            Eduardo precisaria matar um gato de uma maneira rápida e sem dor, logo depois tirar-lhe os olhos e enrolar o corpo do bichano em ataduras, como se estivesse mumificando-o. Logo após isso ter sido feito, o corpo do gato teria que ser jogado em um rio, e os olhos do gato deveriam ser engolidos antes de adormecer. Ao acordar, se teria “os olhos de gato”.
            Na manhã seguinte, Eduardo achou um gato já velho andando pela rua. Achou que se fosse rápido, ninguém daria conta de sua ausência, apenas alguns dias depois. Apanhou o bichano, que lhe mordeu e arranhou para se defender, mas sem sucesso. Eduardo lhe levou até a garagem de sua casa, e pensou em talvez dar-lhe uma marretada no crânio, rapidamente e sem nenhuma dor. Mas então, em um movimento corajoso, ele apertou o pescoço do gato com força, até que sentiu o osso se quebrar. De certa forma, não sentiu remorso de ter feito aquilo, apenas pensava que precisava tirar os olhos do animal.
            E para isso, Eduardo usou uma faca que havia em cima da bancada da garagem. Cada um deles saiu inteiro na ponta da lamina e ele os guardou em um pequeno pote de vidro. Guardou o corpo do gato dentro de um saco para que sua mãe não achasse se entrasse na garagem, e os olhos ele escondeu de baixo de sua cama. Depois que se convenceu que ela não encontraria nenhum dos dois, ele saiu para comprar ataduras. Obteve vários rolos, e achou que com aquela quantidade conseguiria cobrir todo o corpo do bichano.
            E conseguiu. Ficou bastante vedado e Eduardo se sentiu satisfeito com seu trabalho. Agora ele precisava levar o bicho até um rio. Ele sabia que o mais próximo ficava a algumas horas de carro, e então se preparou para a viagem. Ele só esperava que o corpo do gato não começasse a feder, mesmo sabendo que ele o embalsamou bem e demoraria algumas horas a mais para iniciar o processo de decomposição. Pelo o seu tempo na estrada, Eduardo percebeu que já teria anoitecido quando voltasse para casa.
            Ao chegar à beira do rio, ele se certificou de que não havia ninguém por perto, e então arremessou o corpo do gato que ficou boiando enquanto a correnteza o levava para longe. Sentiu-se um pouco estranho ao fazer isso, não culpado, mas com um pouco de receio de certo modo.
            Estava um pouco cansado ao voltar, mas mesmo assim ficou determinado a concluir o ritual. Ao chegar em casa, subiu para seu quarto e apanhou o pote. Pensou que iria vomitar ao imaginar ter que engolir aquilo. Aquelas duas bolinhas brancas e sangrentas que lhe observavam sem nenhuma vida. Abriu e enfiou a mão dentro do pote. Os olhos estavam grudentos ao toque e sentiu a bile lhe vir à garganta. “Vamos logo, seu merda. Você chegou até aqui, não vai amarelar não é?” Não, ele não iria. Fechou os olhos e engoliu aqueles dois olhos em seco. Achou que se tivesse demorado mais um segundo iria vomitar. Tossiu muito quando terminou, seu corpo todo tremia involuntariamente. Lembrou-se de quando precisava tomar algum remédio amargo quando era criança, e riu consigo mesmo desse fato.
            O sono veio logo em seguida, e achou que com isso, ele teria completado o ritual. Quando acordasse, o máximo que ele teria visto era que fez uma grande besteira e que matou um pobre gato indefeso por culpa de uma parte mimada de sua mente.
            Mas a realidade fora diferentemente assustadora quando acordou.
            Ao contrario do que achou, ele acordou no meio da madrugada e não na manhã seguinte. Ele sabia que estava em seu quarto, mas ele estava olhando para um homem sendo açoitado. Ele era obrigado a esculpir uma enorme peça de mármore enquanto um grande homem-cachorro lhe açoitava as costas nuas. Eduardo gritou para aquela coisa parar, pois aquele homem era seu pai. O pavor tomou conta dele e um nó se formou em sua garganta. Quanto mais seu amado pai esculpia aquela peça, mais Eduardo fora dominado pelo horror. Ele estava esculpindo todas as atrocidades que ele cometera para se tornar um homem rico, desde os assassinatos até o trabalho escravo que impunha em estrangeiros ilegais. Seu pai era um monstro, e estava pagando pelos seus pecados no inferno.
            Eduardo olhou ao longe, e viu crianças brincando. Elas eram bastante pobres, mas o que mais o horrorizava era que elas estavam brincando sobre cadáveres de soldados, que ele sabia que eram americanos. Aqueles homens haviam matado aquelas crianças, e deixou o seu espírito manchado pela morte e pela vingança.
            Mais ao longe, Eduardo avistou um homem sendo torturado por varias pessoas. Não sabia explicar ao certo, mas Eduardo teve a impressão de ver o mesmo homem em vários corpos diferentes, mas varias pessoas de roupas listradas lhes atacavam com martelos, facas, armas, mordidas e murros. Ele reconhecia quem eram aquelas pessoas, e sabia que uma parte delas estava no paraíso e a parte menor estava no inferno. Mas aquele homem de bigode curto com certeza estaria com seu espírito condenado por toda a eternidade.
            Eduardo não conseguia deixar de ver, mesmo com os olhos fechados ele conseguia enxergar tudo. Desde a epigênise da humanidade, até os dias atuais, tudo ao mesmo tempo. Ele estava obtendo toda a sabedoria que um gato tem, mas gatos não enlouqueciam porque não entendiam o que viam. Tudo o que o mundo é hoje, foi construído com sangue e com sofrimento, e Eduardo estava sentindo esse pesar das pessoas que se foram. Ele estava conhecendo a verdadeira historia.
            Algum tempo depois, a mãe de Eduardo estava aos prantos ao entregar o filho para o sanatório. Ela acompanhou seu menino se transformar em homem, fora injustiçada por ele e aceitou tudo, sendo desprezada pelo marido e filho. Agora, seu saudável Eduardo estava de alguma forma louco. Ele começava a gritar e falar sozinho, depois começava a chorar por um motivo que ela não entendia. Depois disso, ele começou a se tornar agressivo e não parecia mais aquele homem inteligente e estudioso que era, mas sim um drogado que nunca havia freqüentado a escola.
            Era doloroso demais para ela ver o filho em uma camisa de força, e com o olhar perdido como de um débil mental. Recusava-se a acreditar que seu filho estava naquele estado, mas infelizmente ele havia ficado de alguma maneira louco e insano. Toda a vez que ela fora o visitar ia embora com os olhos cheios de lagrimas. Tudo o que ele repetia era: “Vamos todos para o inferno”, “Somos podres e fomos esculpidos com mentiras”, “A humanidade é cruel e sem nenhuma piedade”.
            Nenhuma mãe merecia ver o filho daquele jeito, completamente insano e sem nenhuma consciência, pois ela sabia que seu Eduardo, seu amado filho estava morto de certa forma. Ela lembra-se de quando via aquele menininho estudioso e aplicado. Certa vez havia o advertido em um momento de devaneio que, se ele procurasse todas as respostas, ele iria acabar encontrando-as.