sábado, 21 de outubro de 2017

A Cabeça do Bacana

Bacana foi encontrado sem cabeça em seu apartamento em cima da cama. Havia sangue por todas as partes e seu corpo ainda não havia ficado completamente frio. Não ouviram nenhum grito ou pedido de ajuda, nem mesmo os móveis haviam sido derrubados. A Loira, sua namorada, estava dormindo na casa dos pais naquela noite. Alguns jornalistas mais carniceiros sabiam que havia acontecido alguma coisa no prédio da jovem celebridade, mesmo a policia ainda não ter divulgado nenhuma informação. Simplesmente sabiam que algo aconteceu e queriam ser os primeiros a dar a notícia. Renderiam excelentes breaking news.
 Bacana estava num patamar elevado, mesmo com tão pouca idade. Começou ainda menor de idade fazendo vídeos cômicos para a internet com uma câmera de baixíssima qualidade, que em pouco tempo fez um grande sucesso. Sua carreira estava estabelecida há pelo menos seis anos, assim como uma pequena fortuna. De origem humilde e com vídeos amadores, evoluiu para um ator de comerciais, comediante de stand up e dono de uma pequena loja virtual.
A portaria havia sido acionada às três horas da manhã por um dos moradores que estava chegando. Havia sangue na porta e no tapete de entrada do apartamento do rapaz, o que era assustador por si só. Bateram na porta várias vezes, e quando não houve resposta ficaram preocupados. Sabiam que o dono não tinha sono pesado, além de ser uma pessoa de hábitos noturnos. Ligaram para a namorada, outra celebridade que começou sua carreira na internet, e perguntaram se ele estava com ela. Dada a resposta, esse foi o sinal verde para entrarem no apartamento e verem a cena horrível.
A polícia e a perícia técnica chegaram menos de meia hora depois. Alguns ali eram fãs do rapaz, e vê-lo daquele estado era algo mais repulsivo do que seria de costume. Se fosse qualquer outra pessoa que não fosse admirável seria apenas horrível, mas como era o caso, também era revoltante. O mais estranho daquela história era o fato de quem quer que tenha feito, planejou tudo com muito cuidado. Não havia nenhuma digital, nem pegadas de sangue ou sinal de violência. Tudo foi muito bem arquitetado para ser uma grande intriga, apesar das investigações iniciais serem muito superficiais. 
Mas o mais estranho daquela história era a cabeça de Bacana: ela havia sumido. Procuraram em vários lugares em que poderia estar, mas ela havia sumido.
Os curiosos já haviam se aglomerado na frente do prédio. Todos ali queriam, em primeira mão, saber o que estava acontecendo. Apesar de ser muito tarde da noite, o número de pessoas haviam passado de dez, incluindo os já ditos jornalistas. Os mesmos sabiam que em pouco tempo iriam falar, e se fosse algo sobre Bacana, seria melhor ainda.
O mais estranho e irônico daquela história era que, apesar deles estarem no local do crime e possivelmente serem as primeiras pessoas a terem informações sobre a morte, na verdade eles foram os últimos a saber. A internet foi à loucura naquela noite, e apesar de muitas pessoas suspeitarem de ser uma notícia falsa, boa parte acreditou por motivos que nem mesmo elas sabiam dizer. Fóruns, redes sociais e portais de notícia sensacionalistas já estavam correndo a informação.
Mas como poderiam estar cientes do que havia acontecido, uma vez que nem mesmo a polícia havia divulgado o que havia acontecido? Muito simples.
A cabeça do Bacana havia sido posta num leilão da internet, com fotos muito realistas e convincentes dentro de uma geladeira. Algumas pessoas começaram a analisar essas mesmas fotos, pixel por pixel, e comprovaram serem todas verdadeiras. O texto da descrição do leilão foi o horror de muitas pessoas.
“Gente como eu sou Chato matei o Bacana. Preciso pagar o aluguel e to vendendo a cabeça dele, será que vale alguma coisa? Ainda ta com as marquinhas da faca no pescoço, o melhor lance leva! Corram, senão vai esfriar muito!”

E com isso começaram os lances. Alguns altos demais.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Um Homem Morto Não Namora

Gustavo ouvia suas músicas enquanto terminava o trabalho da escola. Uma das abas da internet estava aberta no perfil de Roberta. “Por que eu ainda faço isso? Por que eu faço isso?”. Havia avistado ela pela primeira vez há um ano e meio, no começo do primeiro ano e desde lá tinha essa coisa presa na garganta. Depois de uma semana que começou as conversas tímidas com ela, veio àquela flecha nas entranhas. “Em um relacionamento sério com Daniel Pazzo.”
Não conhecia o sujeito, mas o odiava.
            Cada música em sua lista de reprodução era uma memória. “Como canções podem expressar tudo o que sentimos...” Estava ouvindo Linkin Park no momento em que vira aquilo que fora o tormento até o fim. Era como um mártir que gostava de ter, no fundo se achava masoquista. “Essa tava tocando quando ela disse que tinha feito sexo com ele...”
Não conhecia aquele cara, mas queria seu coração em uma travessa de prata.
            Olhava as fotos de Roberta apenas para açoitar a própria carne com aquele sorriso de garota comprometida. “Eu nunca a faria sorrir desse jeito.” Sabia disso porque ela só o procurava para chorar. Gustavo no fundo acreditava que o sofrimento era normal de ser atraído para si, pois a pessoa que amava só falava de coisas ruins. No fundo era tudo culpa dele, pois era uma pessoa triste e atraia tristeza. Roberta de fato merecia algo melhor, e ele seria usado como pano de chão.
Já eram dez horas e o trabalho estava praticamente pronto. Minimizou a tela e fora olhar um pouco das redes sociais. Curiosamente havia uma solicitação de amizade com um nome muito estranho. “ErFlor LaBak...”, Gustavo leu em voz alta. Esse era o nome do perfil, que tinha como foto um alfabeto com letras vermelhas em um fundo negro. Deu de ombros e aceitou, se qualquer coisa acontecesse era apenas bloquear o sujeito.
Cinco minutos depois, no meio de uma música de Bring Me The Horizon, tudo ficou silencioso e escuro. “Porcaria de queda de luz.” Depois de um segundo, Gustavo percebeu que não havia salvado o trabalho. Seu coração parou por um momento para então começar a bater com toda a força. Ele havia demorado duas horas para fazer toda a pesquisa e acertar os arremates. Sua mãe não deixaria ficar mais meia hora no computador, e mesmo assim havia caído a luz.
Deu um soquinho na testa e suspirou. “Porque eu não salvei essa porcaria?” Ele sabia o porquê: era um retardado. Sempre esquecendo as coisas para deixar para depois, e aí quando dá mal, não sabe o motivo. “Talvez se eu falar com a mãe ela me deixa ficar um pouco mais até terminar quando a porcaria da luz voltar.”
Depois de cinco minutos na escuridão e no silêncio, ele ouviu o som do microondas na cozinha sendo ligado e as luzes se acendendo. Pelo menos não havia demorado muito, e ele poderia recomeçar o trabalho rapidamente. Primeiro ele verificou avidamente se o trabalho não tinha sido salvo automaticamente, mas não encontrou nada. Suspirou e pensou em não fazer mais o trabalho. “Vale três pontos e você está precisando disso.” Abriu a internet e começou a vasculhar o histórico, para que não precisasse ter que pesquisar tudo de novo.Um som levemente familiar lhe veio. Olhou para a aba do chat do Facebook e tinha uma mensagem. “Não olhe agora, você precisa refazer todo o trabalho.” Mas não adiantou e ele fora ver quem era.
Era aquele novo amigo, o tal de “ErFlor LaBak”.
“Está procurando por isso?”, junto havia um arquivo anexado.
“Não clica nessa coisa, pode ter vírus.” Mas como era apenas um arquivo do Word, não aconteceria nada de demais. 
Ativou o antivírus e baixou o arquivo.
Sua boca se abriu em um ângulo de noventa graus quando viu o que havia. Seu trabalho, todo ele, estava ali. As imagens, tudo o que ele havia formatado, estava no arquivo que aquela pessoa mandou. Sua reação foi uma mistura de emoções. A primeira delas era a extrema felicidade de ver que não perdeu tudo, e logo em seguida as duvidas. “Como esse cara tinha o meu trabalho?” A primeira hipótese foi que ele rastreou o IP do computador e achou o trabalho enquanto tentava coletar informações. “Mas eu nem tinha salvado, não tem como alguém ter pegado.” E a terceira pergunta era: porque ele ou ela fez isso? Cada hipótese deixava Gustavo mais preocupado e assustado.
“Garoto, imprima logo isso antes que sua mãe lhe tire do computador.”
Logo quando veio essa mensagem, Gustavo ouviu sua mãe andando de um lado para outro no corredor da sala. Ele sabia que ela estava prestes a ir dormir e ele também deveria ir.
Aquele perfil estava certo de novo.
“Amanhã nós conversamos. Imprima e vá dormir.”
“Obrigado...”
Gustavo imprimiu todas as doze páginas e desligou o computador. “Eu acabei de obedecer àquele cara?” E ele nem sabia se era um homem ou uma mulher. Podia ser um maníaco que estava lhe vigiando de perto faz muito tempo.
Ele só conseguiu dormir quando quase era hora de acordar. Durante toda a noite imaginava aquele perfil, ErFlor LaBak, aparecendo das sombras do seu quarto. “Eu disse para você ir dormir!”. Era tudo muito inquietante em sua cabeça.
            Valeu à pena ter ficado algumas horas fazendo aquele trabalho, pois ele teve a nota máxima. Provavelmente não teria o mesmo valor se ele tivesse perdido naquela queda de luz... Ou se aquela pessoa não tivesse lhe dado uma cópia. Não comentou nada disso com ninguém, e era uma das poucas vezes que queria ir para casa logo. Normalmente Gustavo ficava feliz de pelo menos ver Roberta. Tinha dias que ela preferia ficar com outras pessoas, e ele entendia isso. Quando podia pelo menos trocar algumas palavras com ela e lhe admirar bastava. Mas quando ela tirava um tempo para falar com ele, mesmo que fossem seus problemas, ganhava o dia.
“Ouvir sua voz e sentir o cheiro agridoce de seu perfume é tão bom...”
            Mas hoje era um dos raros dias que a beleza estonteante de seus cabelos louros não era prioridade. Queria ir para casa e tentar a todo o custo falar com aquela pessoa, que ele não tinha uma mínima noção se era homem ou mulher. Mas uma coisa era certa: seu medo análogo a idéia de que alguém estava o vigiando.
            A tarde estava demorando a passar, os minutos eram tortuosos. Aquele ErFlor LaBak não estava online, até que quando bateu sete horas da noite, se irritou e escreveu algo no chat.
            “Como você tinha o meu trabalho?”
            “Achei que nunca fosse vir falar algo.” Nesse momento, Gustavo percebeu que ele estava ali o tempo todo.
            “Porque você não falou nada?”
            “O interesse era seu.” Aquilo o deixou irritado, mas relevou.
            “Quem é você?”
            “Não tenho um nome, só juntei letras e criei um nickname para mim.”
            “Você está me vigiando?”
            “É um pouco idiota me perguntar uma coisa dessas, já que você posta até mesmo o que come no café da manhã. Qualquer um vigia você se quiser.” Aquela pessoa estava brincando com Gustavo. Seu semblante era de raiva e medo.
            “Eu não estou falando disso. Você tinha o meu trabalho!”
            “Garoto, agora estamos começando a conversar...”
            “Você está me deixando assustado desde ontem.” Admitiu Gustavo.
            “Não tem porque, meu amigo. Eu estou aqui apenas para ajudar. Você tinha se esquecido de salvar o trabalho, eu lhe dei uma cópia.”
            “Mas como você tinha?”
            “Rapaz, tudo o que é feito no mundo digital eu tenho acesso. Eu sou onisciente em todos os computadores, servidores, e até mesmo nos livros.”
            “Você é doente.”
            “Eu? Não sou eu que fico agüentando o mártir da mulher que amo enquanto sei que ela está na cama com outro, que por sinal odeio. Não sou eu que vivo com a esperança que um dia irei me deitar com a mesma, sendo que ela adora o calor de outro. Mas eu sou o doente, certo?”
            Gustavo ficou quase cinco minutos sem saber o que responder. Aquele estranho lhe mandou tudo como se fosse um tiro de escopeta. Ele nunca havia dito aquilo para ninguém! Foi até a opção de bloquear, mas parou um pouco antes de concluir.
            “Não faria isso se fosse você, eu estou aqui para lhe ajudar.”
            Sim, aquela coisa, pois não ousava mais pensar naquilo como uma pessoa, sabia exatamente o que ele queria fazer. Afinal de contas, o que era aquilo? Parte de Gustavo queria descobrir, mas outra queria esquecer daquilo tudo.
            “Sugiro que siga em frente, Gustavo. A não ser que você volte a viver como um macaco nas árvores, eu sempre estarei por perto para lhe ajudar.”
            “O que você quer de mim?”
            “Era eu que deveria fazer essa pergunta, garoto.”
            “...”
            “Você quer tantas coisas, mas está com a bunda na cadeira em frente de um computador. Eu posso lhe conseguir essas coisas.”
            “Você é só um hacker que invadiu o meu computador.”
            “Haha. Eu posso hackear o mundo a minha volta e fazer sua vontade, Gustavo. Basta dizer seu desejo e serei seu mordomo.”
            “Eu não sei o que dizer para você, seu filho da puta.”
            “Isso, agora estamos ficando quentes! Eu vejo você olhando as fotos de Roberta e seu desejo fica ainda mais forte quando ela fala com você, mas ela te despreza muitas vezes lhe deixando sozinho com o ver sua beleza. Você a quer para si.”
            “Estou lhe avisando, se você fizer algo com ela eu te mato.” Nessa altura, Gustavo nem mais se impressionava pelo fato dele saber de seus segredos íntimos.
            “Está esquentando! O que você ganha se eu fizer algo com ela? Já te disse que estou aqui apenas para ajudar, e nada mais do que isso.”
            “Ela está feliz do jeito que está.”
            “Mas ela poderia estar feliz ao seu lado.”
            “Ela namora aquele vagabundo.”
            “Um homem morto não namora...”
            Isso foi um basta para que Gustavo fechasse as janelas e desligasse o computador. Aquela conversa maluca estava dando dor de cabeça para ele e nada fazia sentido. A única explicação que o garoto conseguia pensar era que algum colega de sala havia invadido seu computador e estava tirando onda com sua cara.
            Tinha que ser isso. Apenas uma brincadeira de mau gosto.
            Novamente, sua noite de sono não foi tranqüila e perdeu horas e horas até conseguir dormir. Duas horas depois seu despertador tocou e parecia que um caminhão tinha passado por cima de sua cabeça. A dor não se fora.
            No dia seguinte, Gustavo notou que Roberta estava quieta e não falava com ninguém. Quando decidiu ir até ela, respondeu que o namorado não havia respondido ela essa manhã, e nem ao menos visualizou as mensagens. Pretendia ir até a casa dele depois da aula, pois estava preocupada. “Novamente falando desse macho”, pensou. No fundo ele não sabia se não gostava dele ou do fato de Roberta somente falar dele. “Não. Não gosto é dele.”
            Roberta só entrou de novo nas redes sociais quando eram quase nove horas da noite, então contou o que aconteceu: “Eu fui à casa de Daniel hoje depois da aula. Quando cheguei lá, tinha um carro da policia saindo e eu entrei na sala. A mãe dele estava em estado de choque, e quem me contou tudo foi uma vizinha. Daniel amanheceu morto na cama. Ele teve várias artérias dilaceradas por um arame farpado que ainda estava enrolado em seu corpo. A mãe dele disse que não ouviu nada durante a noite, e nenhuma porta ou janela tem sinais de arrombamento. O corpo dele apresentava sinais de luta, mas não havia nenhuma evidencia que alguém entrou na casa. Acham que ele cometeu suicídio, mas isso não faz sentido...”
             Gustavo leu com atenção todas as mensagens de Roberta e quase que no mesmo instante mandou uma mensagem para aquela coisa.
            “O que você fez?” A resposta veio quase na mesma hora.
            “O que você queria garoto. Agora só depende de você para que a mulher seja sua.”
            “Você matou o namorado dela?”
            “Eu lhe disse: um homem morto não namora.”
            Gustavo não sabia direito o que pensar. Aquele ErFlor LaBak de alguma forma matou Daniel, e fez isso porque ele queria! Não, isso não era possível. Havia muita coisa passando em sua cabeça, mas não queria acreditar nisso. “Entrego esse cara pra policia?” Ele era um hacker, conseguiria se proteger muito bem e ainda poderia fazer com que Gustavo parecesse culpado.
            “A única coisa que pode lhe ajudar agora, garoto, é você ir atrás de sua mulher. Seria um pouco massivo ter que matar outro homem que abre as pernas dela, mas admito que seria tão divertido quanto foi o primeiro.”
            Aquele sujeito... Ele sabia tudo o que se passava na cabeça de Gustavo. Era como se fosse um demônio, uma coisa de outro mundo.
            Mas e se aquela coisa estivesse certa? E se essa fosse à oportunidade para conquistar Roberta? Pensando nisso, veio a outra mensagem da menina.
            “Gustavo... Eu preciso falar com alguém. Não vou à aula amanhã, poderia vir aqui?”
            Como um idiota que era, aceitou e foi. Matou aula para ir até a casa dela, duas coisas que nunca tinha feito: matar aula e ir à casa de uma garota. A primeira vista, Roberta estava acabada de tanto chorar. A maquiagem borrada no rosto e nem sequer fora tomara banho. Gustavo nem percebeu o que estava fazendo quando ela lhe beijou. A ficha só caiu depois e ela parecia que sabia o que fizera. Ele não sabia direito o que pensar. Roberta disse que não queria fazer isso, mas por um momento se parecia bastante com Daniel, mas ele sentiu aqueles lábios furiosos e apaixonados nos seus. Seu namorado havia morrido e ela já estava beijando outro no dia seguinte?
            Gustavo ficou na casa dela aquele dia inteiro. Seus pais apareceram apenas algumas vezes entre os pequenos intervalos no escritório que era perto do prédio. Eles apenas conversaram, trocaram alguns beijos que Gustavo fez com certo desgosto. Sempre sonhou com isso, mas não era como imaginava.
            Estava um pouco mal por Daniel, pois se sentia culpado.       
            Tudo começou bastante sutil entre Roberta e Gustavo, ninguém notava nada. Todos seus colegas acreditavam que pela proximidade que ambos tinham, ele estava apenas solidário com, mas havia aqueles que achavam que o garoto estava se aproveitando da situação. Sua paixão não era uma surpresa para ninguém, nem mesmo pra ela.
            Depois de um mês, Roberta nem mesmo se lembrava de Daniel. Gustavo se sentia ao mesmo tempo feliz e culpado. Estava junto com a garota que amava, mas quanto mais a conhecia de verdade, via que ela não tinha nada de profundo por trás daquelas lamurias e beleza estonteante.
            Ele era uma pessoa com bastante conteúdo, e não era difícil para ele conversar com ninguém, mas Roberta se mostrou uma exceção. Era fácil falar com ela antes pelo fato dela só se queixar sobre seus problemas, mas agora que tinha a oportunidade de ficar com ela por muito mais tempo, a menina tinha conversas vazias e bastante fúteis com Gustavo.
            “Que tipo de sujeito era esse Daniel? Devia ser um imbecil que só queria comer ela ou era tão vazio quanto.”
Essas visões superficiais de Roberta foram um pouco ofuscadas quando eles fizeram sexo. Era a primeira vez de Gustavo, e isso pesou nele. Sentiu-se novamente apaixonado pela garota, e esse êxtase durou duas semanas, quando eles fizeram de novo outras vezes.
            No fundo, Gustavo era uma pessoa sentimental, mas inteligente. A imensidão do vazio da garota só era brevemente preenchida quando estava dentro dela, mas depois disso tudo voltava a ser como antes. Uma loira burra e mimada, que sempre conseguia passar de ano sabe lá Deus como. “Pelo menos Daniel ‘treinou’ bem ela.” Era um pensamento bastante desrespeitoso com uma pessoa morta, mas no fundo ele pensava realmente isso. Gustavo ainda estava com a garota por pena dela e do homem que, quer queira quer não, acabou provocando a morte.
            Ele sabia que aquele ErFlor LaBak tinha o matado. E fez isso por Gustavo, que ficou muito tempo observando. De certa forma ele se sentia agradecido por aquela coisa, mas no final das contas não era tudo isso que ele pensava.
            Era uma pequena reunião de família, que era nem um pouco questionável que Gustavo gostava da companhia de seus primos. Já haviam passado algum tempo desde o começo dessa história, e talvez em uma festa modesta fosse tirar isso da cabeça por algum tempo, mas a verdade foi diferente.
            “E como está com a menina, Gu?”, Indagou Mario, um menino magro e de óculos de aro grosso.
            “Honestamente, eu to pensando em terminar...”
            “Mas por quê? Vocês estão sempre postando fotos tão felizes!”, o primo retrucou com certo espanto na voz.
            Esse era o problema: todos achavam que estava tudo bem com eles pelo o que viam nas redes sociais. Ninguém conseguia ver o que se passava por quatro paredes e a grande concha vazia que Roberta era. Muitos de seus amigos lhe diziam “seu malandro esperto, um cara inteligente como você merece conquistar uma gatinha como ela”, mas estava vendo que não foi nenhum pouco inteligente. Passou um ano e meio querendo algo que não era o que ele pensava.
            Mas porque ainda ficava com ela? Será que era pena, queria aproveitar os espólios depois de tanto tempo?
Ou sentia medo? Mas de quê?
            Eram nove e meia da noite. Gustavo estava evitando um pouco Roberta, e pretendia romper com ela no outro dia. Quando então chegou uma mensagem de alguém que ele não queria ter que conversar novamente.
            “Como está com a garota, Gustavo?” O garoto demorou um pouco para pensar em uma resposta, pensando no que poderia vir.
            “O que você quer?”
            “Eu só estou preocupado com você. Evitando sua mulher assim, alguma coisa deve ter acontecido.” Ele nada respondeu, então ErFlor LaBak continuou: “Você se cansou dela, não é mesmo?”
            “Não é da sua conta, infeliz.”
            “Se cansou mesmo... talvez você queira se livrar dela, não é mesmo?”
            Algo aconteceu no computador de Gustavo. Abrira uma aba com um vídeo ao vivo. Por um momento seu coração parou, pois percebeu de onde estava vinda aquela gravação. Era do quarto de Roberta, de seu webcam.
            Ela estava em um estado catatônico, sentada na cama. Uma grande sombra escura emergia do centro de seu quarto. Tinha a silhueta de algo humanóide, como um grande chimpanzé esquelético e muito mais alto.
            De suas sombras, emergiram vários fios pontiagudos que começaram a enrolar o corpo de Roberta. A menina começou a sangrar dentro do arame farpado que saia do corpo daquela criatura negra, mas nada disse. Gustavo caiu da cadeira do computador quando aquela coisa olhou para a câmera.
            “Achei que você fosse gostaria assistir essa coisa morrendo.”
            A sombra começou a ficar mais próxima da câmera quando então aquilo aconteceu.
Da tela do computador emergiu a mesma coisa que havia matado Daniel e Roberta. Gustavo estava no mesmo estado de choque com aquilo que estava vendo. Sua garganta se fechou e mal podia respirar. Aquela sombra negra tinha cheiro de tinta e metal, e possuía vários olhos negros por todo o corpo.
            “Você não gosta do que lê?” A coisa emitia um som que mais parecia um sussurro. Não tinha certeza, mas a voz parecia sair de todo seu corpo.
            Não teve muito tempo para pensar sobre isso.
            Ele nada respondeu, pois sua garganta estava muito apertada. Sua língua havia se colado ao céu da boca como se fosse uma só coisa. A criatura deu um passo à frente e sacou uma folha do papel da impressora de Gustavo. Um líquido negro começou a pingar de sua mão em cima do papel, formando palavras.
            “Aqui está sua carta de despedida garoto. Você está confessando seus crimes aqui. No fundo, é tudo culpa sua.”
            De um dos olhos da criatura emergiu um grande fio de arame farpado que se enrolou no pescoço de Gustavo. O sangue quente escorria pelo seu corpo enquanto o fio era pregado no teto, junto ao ventilador. Gustavo tentou lutar, mas sentia sua cabeça sendo dilacerada pelas farpas do arame.
            “Eu lhe disse, Gustavo: um homem morto não namora.”

            Seu estado de choque não passou até ver a criatura entrando de volta pela tela do computador e desligando a máquina, enquanto sentia sua vida se esvair a medida que sangrava. 

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Meu Primeiro Livro!



Boa Tarde!
Hoje irei falar sobre meu primeiro livro, publicado pela editora Fragmentos:
"O Poeta".
O livro conta a história de uma figura enigmática nas redes sociais que publica vários poemas estranhos e sem muito sentido, mas o que ninguém sabe é que esses textos possuem um significado tenebroso por trás, e todos que o idolatram estão em perigo.
A narrativa mostra várias histórias paralelas que se interligam, cada uma contando um pedaço de um todo. Esse livro é o primeiro de uma trilogia que estou planejando há algum tempo, e ele nasceu como uma creppypasta que eu mesmo escrevi e publiquei aqui na Oficina há alguns anos.
O livro por enquanto pode ser adquirido pelo próprio site da editora clicando AQUI, mas em breve também estará disponível nos sites de outras livrarias.
Espero o feedback de vocês! ;) 

domingo, 22 de janeiro de 2017

Não Sou Louco!

Começo dizendo que não sou louco! Quem quer que ache essas palavras (eventualmente irão encontrar), precisa entender isso antes de continuar lendo, caso contrário pode parar nesse exato momento. Sei que estou condenado à morte, preso nesse lugar infernal, mas quero ter a chance de deixar minha versão dos fatos.
            Trabalhei desde minha juventude como caixeiro viajante. Teria condições de trabalhar na padaria de minha família, mas a monotonia é uma coisa que não me agrada. Nunca gostei de ficar em um só lugar, comer as mesmas coisas, deitar com as mesmas mulheres, nada disso. Meu espírito aventureiro não me permitia isso. Trabalhar viajando era a melhor coisa que pude pedir, e graças a meu pai (que Deus o tenha), consegui esse emprego.
            Confesso que fiz coisas muito erradas durante os poucos anos que trabalhei com isso. Não me envergonho de dizer que fui infiel com a minha noiva na época, pois como havia dito, não consigo deitar com uma mesma mulher por muito tempo. E foi em um desses bordéis que começou o que é meu tormento até hoje.
            Não tenho certeza do que aconteceu, se alguém me drogou ou se foi algum castigo, mas após acordar em uma manhã, com duas prostitutas ao meu lado, não conseguia mais tirar aquilo da cabeça. Não sei como descrever. No começo acreditava ser algum pernilongo, mas os insetos não fazia o ruído metálico que mais parecia. Assemelhava a uma música, porém tocada em instrumentos concebidos por uma mente caótica e com uma batida frenética, porém meus poucos estudos de música me permitiram perceber que havia algum tipo de progressão. Aquilo começou a me enlouquecer logo nos primeiros minutos. Não importava o que eu fizesse: nada fazia com que aquele som fosse embora!
Minha família começou a perceber meu estranho e justificável comportamento. Não conseguia mais dormir, nem mesmo com uma forte bebedeira. Comecei a ficar agressivo, e não muito depois disso acabei por ser demitido. Passei a fazer alguns trabalhos na padaria de minha família, apenas para não dizer que não fazia nada, mas a verdade é que não conseguia fazer. A maior parte do tempo, minha cabeça fervia de dores e meus ouvidos explodiam. Aquele som... Misericórdia!
            Porém algo aconteceu durante meu curto período de trabalho que fez com que minha agonia diminuísse por um curto instante. Minha irmã havia cortado acidentalmente o dedo com uma faca enquanto preparava massa para pão, e seu grito de dor fez com que a pressão em minha cabeça aliviasse por um breve momento. Aquilo parecia absurdo, mas volto a dizer que não sou louco!
Mas eu resolvi testar.
            Naquela mesma noite, quando minha noiva veio ao meu quarto, não hesitei em lhe atacar com uma faca. Seu grito de dor fez novamente com que o som em minha cabeça diminuísse. Percebendo isso, lhe ataquei várias e várias vezes, e cada vez que ela gritava em agonia, mais eu me sentia aliviado. Porém, quando seus gritos cessaram, a dor começou a voltar num ritmo constante.
            Eu não deixaria isso acontecer. Eu não sou louco para isso!
            Perguntava-me como que os gritos não haviam chamado a atenção dos vizinhos, no entanto me enganei quanto a isso. Minha casa começou a ser invadida: aquele era o momento para eu me amenizar! Ataquei todos os homens que invadiram com a faca em uma fúria desesperada, e cada vez que aqueles resmungavam de sua dor, a minha diminuía. Até que em determinado momento, conseguiram me desarmar e conter com fortes golpes de pedaços de pau, chutes, socos e coronhadas.
            Nos poucos dias que fiquei na prisão, tive o prazer de ouvir os gritos de dor de outros detentos, quando eram espancados pelos carcereiros ou outros presos. Mas para meu azar, aquela era uma cadeia bastante vazia e não pude ouvi-los por muito tempo. Eu precisava tirar aquela música da cabeça, então comecei a agir ali mesmo. Agredi com socos, chutes e mordidas todos que entravam em meu alcance, só para poder ouvir no mínimo um resmungo do menor desconforto que fosse.
            Não sei o que minha família disse para as autoridades, nem porque fizeram questão de examinar a minha pele (inclusive de minhas genitais), mas minha sentença foi clara logo no início: sanatório de Ghartov. Aquilo não poderia ser melhor para mim! Volto a dizer, eu não sou louco, mas em um hospício eu poderia me deleitar com vários gritos de dor, correto?
            Errado! Esse lugar me deixa pior a cada dia! Claro, aqui eu consigo ouvir vários gritos, e muitos deles dolorosos, mas o fato é que a maioria deles estava misturada à loucura de meus colegas, e isso me deixa pior! Eu acreditava que não havia como piorar, mesmo depois de toda a dor e barulho originais voltarem à tona, mas a verdade é que tinha como sim! Quanto mais eu ouvia os resmungos, gemidos e gritos de loucura dos outros, o som tomava outras proporções em minha mente, como se alguém pegasse meu cérebro e o amassasse como massa de pão. Você acha que quando se leva um choque elétrico na cabeça, você grita de dor? Não! Eu sei disso, porque levei vários e digo que não dói. É o grito de uma mente primitiva, como o choro de um bebê ao sair do ventre da mãe.
Consideram-me um paciente perigoso, pelo fato de querer agredir qualquer um que chegue perto de mim, mas tente entender! Eu não conseguia sentir alívio se não fosse assim. Qualquer sinal sonoro de sofrimento me dava uma pequena brecha para poder respirar.
Estou completamente isolado, em um quarto que só é iluminado brevemente por uma janela ao nascer do sol, e no restante do tempo estou completamente no escuro. Escrevo isso nos poucos momentos de luz que tenho, utilizando um papel que encontrei por aí (já nem me lembro onde) e o sangue de ratos que eventualmente me fazem companhia. Já fazem muitos meses que moro aqui, recebendo duas refeições sem gosto por dia. Estou no mais absoluto silêncio externo, mas a música continua em minha cabeça. Sei que não irei sair mais daqui, mas sonho com o dia em que ainda poderei ouvir, mais uma vez, os gritos de dor e agonia, talvez tantos que esses sons irão embora por completo.
E volto a dizer: eu não sou louco!              


(Manuscrito encontrado em um tijolo solto em um quarto do subterrâneo, após a instituição ser fechada. Não possuí data, mas pelas descrições no texto e depoimento de funcionários mais antigos, acredita-se ter sido escrita em meados de 1920.)