domingo, 26 de abril de 2015

Afogados e Mutilados

Rafael não estava contente em voltar para sua cidade natal, pois aquele lugar lhe dava tristeza. Mesmo já sendo homem feito e seu pai um senhor de idade, ambos não conseguiam se esquecer daqueles dias em que eles foram embora para Porto Alegre. Todos gostavam do interior, mas ele não trazia boas memórias para ambos. E agora estavam obrigados a ir até lá para resolver um problema que achavam que já estava morto e enterrado. Ou afogado.
            São Batista... Esse nome trazia a Rafael uma mistura de medo e repulsa. Ele tinha apenas nove anos quando seu pai lhe dissera para tirar água do poço pela primeira e única vez na sua vida. Ele sabia que era arriscado fazer isso, então sentia um pouco de ansiedade e orgulho de ser escolhido para buscar água, pois normalmente era seu irmão mais velho, Felipe, que fazia essa tarefa.
            Suas mãos relativamente pequenas seguravam o balde com toda a força que dispunha. Era de ferro, e já vazio era bastante pesado para uma criança da idade dele. Acreditava que ficaria ainda mais quando estivesse cheio de água, e só rezava para não derrubar toda a água no chão. O poço ficava a quase trinta metros da casa, em um lugar um pouco isolado do terreno da família. Segundo seu irmão, Felipe, aquele poço já existia antes da casa ser construída, e sempre havia água fresca nele. Nem mesmo seu pai sabia ao certo quando ele fora construído, mas a julgar pelo limo e jeito das pedras que calçavam as laterais do grande buraco, ele deveria ser muito antigo, provavelmente com mais de cem anos.
            Rafael sabia que precisava ser um balde de ferro para pegar água do poço, pois assim ele enchia mais facilmente e corria menos risco dele virar na subida de volta. Ele estava com bastante medo, pois sempre ouviu historias de crianças que caiam dentro de poços quando tentavam tirar água, pois se inclinavam demais e despencavam vários metros antes de morrer lentamente com a água invadindo seus pulmões.
            Ele tentava afastar esse pensamentos, mas infelizmente eles estavam vindo a tona, principalmente quando precisou inclinar o corpo para subir o balde a superfície. Rafael nem mesmo respirava, tanto pela grande força que precisava fazer, quanto pelo medo de acabar caindo dentro daquele buraco escuro e frio. Era assustador olhar para o fundo daquele poço, como se fosse subir alguma coisa rastejando pelas paredes e emergindo na borda, assim puxando crianças levadas para se afogarem lá.
            Pelo o que sobrava de corda, faltava pouco para o balde estar a sua disposição. Só estaria tranqüilo quando estivesse com ele nas mãos. Ele achava que estaria tranqüilo com ele nas mãos, mas na verdade o pavor só começou quando ele emergiu.
            Pesava muito, e Rafael precisou usar as duas mãos para carregar o balde de volta para casa. Seu pai lhe esperava com um sorriso quente na porta da casa, e o menino tinha orgulho de si mesmo. Em sua doce fantasia de criança, acreditava que em breve seu pai lhe levaria para atirar em algumas marrecas, ou talvez lhe orientar para caçar alguns capinchos. Sentia-se um rapaz agora que fora encarregado de tirar água do poço.
            Essas fantasias foram podadas com o grito de horror de pai ao pegar o balde.
            Rafael não percebeu que a água, que naturalmente era levemente amarelada, estava manchada de vermelho. Se fosse marrom, talvez eles pensassem que o poço havia secado e tinha somente água barrenta agora, mas aquela coisa no balde tinha cor de um vinho misturado com água. Seu pai, Manoel, a principio pensou que seu filho havia pegado água de alguma poça ou no açude ali perto, mas não tinha como. Acreditava no filho quando o mesmo disse que a água vermelha veio do poço.
            Rafael dando falta de seu irmão, foi quando seu pai e vários outros homens desceram com cordas no poço, temendo que o pior havia acontecido, e que de fato aconteceu. No interior do Rio Grande do Sul, os homens naturalmente têm muita honra e dizem não chorar, mas Seu Manoel não conseguiu conter as lágrimas de tristeza e remorso quando os homens tiraram seu filho, Felipe, de dentro do poço. O menino sangrava pelo pescoço e seu corpo estava inchado. Seus olhos parados e sem nenhum brilho, com a pele pálida e os cabelos, um pouco por cortar, molhados e grudados no rosto.
            Ninguém sabia dizer como que o menino havia caído dentro do poço, pois ele só buscava água quando o pai o ordenava, e naquela manhã quem fora buscar foi Rafael. A mãe deles, Iolanda, tinha certeza que os dois meninos estavam em casa na noite anterior, e ele não havia saído.
            A teoria mais provável era que o menino tinha acordado antes do galo cantar, percebera que não havia água e fora buscar. Era verão e fazia muito calor, portanto devia ter sede. A ausência de luz fez com que o menino tropeçasse e caísse no poço, quebrando o pescoço e se afogando por não conseguir se mexer,
            Depois desse episodio lamentável, a família de Rafael não conseguiu se manter naquele terreno por muito mais tempo. Cogitaram se mudar para outro, mas teriam que furar outro poço e tinham criado trauma. Depois de alguns meses, eles juntaram as fartas economias que tinham, venderam a casa e se mudaram para a capital.
            A vida para eles, por mais que tivessem algum dinheiro e Seu Manoel conseguiu um bom emprego em seguida, foi muito difícil na cidade de Porto Alegre. De fato, havia educação, saúde e segurança muito melhores do que em São Batista, mas por mais que as condições de vida fossem relativamente melhores, havia barulho. Muito barulho. E fumaça. Tudo parecia ser feito de concreto, e nada parecia natural, embora em Porto Alegre ainda tivesse uma farta quantidade de árvores.
            O barulho era em qualquer lugar. De buzinas, aglomerado de pessoas, fabricas, tudo. Parecia que na cidade grande não havia nada que não fizesse algum barulho desagradável, nem mesmo as pessoas. No interior, por mais que as pessoas das áreas mais urbanas dissessem que eles eram uns “grossos”, entre eles as pessoas eram bastante educadas e unidas. Na cidade, a pequena família recém chegada parecia ser estranha aos outros de quem soubessem de onde viessem, e ninguém em Porto Alegre era unido. As pessoas eram mal educadas umas com as outras, e se apegavam a pequenos grupos de amigos, e ninguém mais importava.
            Os primeiros tempos foram difíceis, mas aos poucos eles foram entendendo que na cidade as coisas eram bem diferentes por razões bastante justificáveis. Para começar, era uma cidade muito maior que São Batista, não teria como as pessoas serem todas bastante unidas, mas aos poucos perceberam que estavam errados sobre isso, pois quando precisavam de ajuda, todos eram bastante solidários como no interior. Não tanto quanto, mas eram também.
            Sem contar que Porto Alegre é uma das maiores cidades do Brasil, e um grande centro urbano e comercial. O barulho e o murmurinho eram comuns nesse tipo de lugar. Entendendo isso, e conhecendo melhor o povo, a família finalmente se sentiu em casa na nova cidade. Nunca se esqueceram de suas raízes, mas finalmente se sentiram bem vindos na capital.
            Durante trinta anos, muitas coisas aconteceram na vida deles. Rafael arrumara um bom emprego e se casara, mas essa união não durou mais que cinco anos, pois sua esposa veio a falecer decorrente de um câncer de pulmão. Era uma mulher muito boa, mas adorava seus cigarros, e cerca de duas carteiras por dia desde os quinze anos de idade lhe ceifou a vida com vinte e nove anos.
             A segunda a deixar o mundo fora Dona Iolanda. Mas dessa vez, o câncer lhe atacara o intestino. Todos estavam chorando no leito de morte da velha senhora, mas Rafael riu. As duas mulheres mais importantes para ele morreram por causa de câncer. A vida é muito irônica às vezes.
            Depois disso, Rafael nunca mais se casou e visitava seu pai regularmente. Eles eram muito ligados um com o outro, mas depois das duas tristes perdas, três na verdade, eles se tornaram muito próximos um do outro. Mais que pai e filho, eles eram amigos. Felizmente, ambos eram bastante saudáveis e tinham dinheiro. Manoel, por mais que estivesse perto de se aposentar, ainda trabalhava. Depois de tantos anos naquela metalúrgica, ele aprendera muita coisa que lhe evoluiu como profissional e pessoa, e tinha a filosofia de vida que um homem só adoece quando fica parado. Agarrado a isso, nunca parou de trabalhar mesmo beirando os setenta anos. Rafael era um homem inteligente, e com isso conseguira passar em um bom concurso publico. Ganhava bem, o trabalho era leve e tinha tempo para cursar sua faculdade de direito e visitar o pai regularmente.
            Embora eles dois tivessem boas condições de saúde, dinheiro e fossem muito próximos um do outro, eles eram bastante sozinhos. Com o passar do tempo, eles foram perdendo contato com os antigos amigos que fizeram logo depois dos “maus tempos de chegada à cidade grande”. Rafael tinha alguns colegas do qual tomava uma cerveja na noite de sexta, mas não eram exatamente pessoas com quem se podia contar. Por mais que ele não quisesse mais se casar, ele sentia falta de ter alguém do seu lado, por mais que tivesse seu pai.
Seu Manoel era um gaucho típico. Saia nas suas folgas para passear, conhecer pessoas novas, mas nunca mantinha as amizades que fazia. Não era porque ele não gostasse, mas ele simplesmente não queria mais se apegar a novas pessoas. Já perdera a esposa, um filho e a nora, não gostava da idéia de se tornar querido por muitas pessoas, acabar morrendo e deixando todas com a mesma dor que ele sentia em seu coração.
Era aniversario de Rafael, e seu pai lhe chamou para vir até a sua casa. Eles ouviram suas musicas prediletas, que variavam desde uma boa e velha musica tradicional gaucha, até um bom rock n’ roll e musica eletrônica. Beberam algumas cervejas e comeram um churrasco preparado por seu Manoel. Em todos os aniversários de ambos, eles costumavam sempre chamar algumas pessoas, mas naquele em especifico passaram sozinhos. Mas por mais que fosse assim, Rafael achou uma das mais agradáveis celebrações que ele teve. Sempre tinham assuntos para conversar e nunca ficavam de mal.
Mas daí então surgiu um telefonema que nenhum deles esperava.
Era um agente do governo lhes perguntando se eles eram donos da dita casa em São Batista. Eles informaram que já moraram lá, a casa fora vendida há mais de trinta anos. O homem lhes informou que desde então, aquele terreno tinha sido vendido para seis nomes diferentes dentro desses trinta anos, e fazia cerca de cinco que a casa estava completamente abandonada e sem ninguém com nenhuma relação aos antigos donos para os assuntos de posse da residência. Caso eles não quisessem ela de volta, o governo colocaria ela para leilão. Eles disseram que não tinham nenhum interesse nela, mas mesmo assim, como não havia mais nenhum “dono” e eles eram o mais próximo disso, eles precisariam viajar até a cidade para assinar os papeis.
Um calafrio subiu a espinha dos dois ao saber do que teriam que fazer. Acreditavam que passariam por alguma burocracia e teriam que esperar alguns dias, e como São Batista ficava muito longe de Porto Alegre, não era viável viajar varias vezes para lá. Por isso estavam levando roupas e dinheiro para ficarem vários dias.
Seu Manoel dirigia o carro, e Rafael olhava pela janela. Os estepes verdes e cheios de vida lhe trazia boas lembranças, que aos poucos eram invadidas pela imagem de seu irmão afogado no poço e pelo balde com água vermelha. Tinha apenas nove anos quando isso acontecera, mas as memórias estavam frescas em sua mente, o que lhe dava a impressão de que tinha nove anos novamente e estava sentindo a mesma angustia. Ele e seu irmão eram muito ligados, tanto quanto ele e seu pai eram nos dias de hoje. Talvez gostasse tanto do velho Manoel porque de certa forma lembrava o afeto que tinha por Felipe. Às vezes ele se pegava pensando em como seria sua vida se o irmão não tivesse morrido. Se iriam se mudar para Porto Alegre, ou o que quer que teria acontecido em suas vidas.
São Batista, por mais que estivesse bastante diferente do que de costume, ainda parecia a mesma cidade. O centro era parecido com Porto Alegre a cerca de dez ou quinze anos atrás, mas ao redor parecia a mesma coisa. Nas redondezas da cidade havia ainda casas feitas de barro e sapé, e os grandes campos de trigo, arroz e soja deslumbravam a periferia do centro da cidade, porém Rafael se lembrava que na década de 80, quando fora embora, o máximo que havia para ajudar os trabalhadores eram alguns tratores muito precários, e agora os campos eram maquinados com grandes colheitadeiras e tratores muito mais modernos.
            Chegava ser um pouco irônico o fato de haver casas de barro com maquinas tecnológicas trabalhando no campo. Lembrava-se que a sua casa era feita de barro e pau-a-pique, que ele julgava já ter sido destruída. O que deveria valer algum dinheiro e a razão dele e seu pai estarem ali era o terreno, que tinha um tamanho bastante considerável, pois não havia uma “casa” de verdade.
            Quanto mais Rafael olhava aquelas paisagens, mais vontade de ir embora tinha. Poderia ser aceitável para ele e a família viver nesse tipo de lugar há trinta anos atrás, mas naquele momento parecia diferente de tudo o que ele conhecia. Ele sempre acreditou que nunca tinha esquecido suas raízes, mas a verdade era que de fato ele havia. Tudo ali era estranho e hostil, e nada parecia aconchegante. Sentia falta do sinal de wifi para seu celular, de um lugar com menos mosquitos e mais urbanizado.
            Seu Manoel não sabia o que estava sentindo. Ele também achava que iria se sentir em casa, mas na realidade aquilo era um lugar estranho. Não era a mesma São Batista que havia nascido, se criado, casado, tido dois filhos e perdido um. Por mais que o povo continuasse basicamente o mesmo, ele achava que tinha mudado demais nesse tempo todo, a ponto de que sua terra natal fosse estranha para ele.
            Rafael se enganou quanto a sua antiga casa, pois ela estava lá de pé e quase do mesmo jeito que era antes. Ele se arrependeu de ter olhado no fundo do terreno, pois lá estava aquilo. A visão para aquele poço deu um grande calafrio na espinha dele, e seu pai precisou diminuir a velocidade do carro. As lembranças de ter tirado um pobre menino, que um dia fora seu filho, totalmente molhado, o corpo inchado e pálido e os olhos parados e sem nenhum brilho de dentro daquele poço... Ele não sabia o que fazer. Parecia que estava sentindo a dor da perda naquele mesmo momento e chorou. Rafael abraçou o seu pai pelos ombros e fez o possível para consolar seu velho. Ele tinha perdido a esposa, a mãe e o irmão, mas nunca teve filhos para se colocar no lugar dele. Leu uma vez que quando um filho perde um dos pais, ele sente perder sua mortalidade, mas quando um pai enterra um filho, sente perder sua imortalidade.
            Depois que Seu Manoel se recompôs, o velho avistou ao longe um velho amigo de infância. Ele foi obrigado a parar o carro para ir até lá dar um abraço. Um senhor calvo com um cavanhaque branco lhe cumprimentou com um grande sorriso no rosto. Rafael se perguntava como os dois haviam se reconhecido sendo que se passaram tantos anos, mas relevou. Ele se chamava Rodrigo, o que Rafael achou curioso, pois “Rodrigo” parecia um nome bastante jovial, e era estranho vê-lo em um senhor de idade avançada. Rodrigo e Manoel ficaram conversando por poucos minutos, até que o velho percebeu que precisava ir embora. Ele convidou os dois visitantes de São Batista para um churrasco no piquete, que Rafael tinha uma vaga lembrança de qual se tratava, que ocorreria naquela mesma noite. Ambos aceitaram com muito entusiasmo. Mesmo eles comendo fartos e deliciosos churrascos em Porto Alegre, no interior ele era diferente. Muito mais gostoso e tradicional, a carne era sem nenhum conservante e o único tempero era o bom e velho sal grosso. Lhes deu água na boca só de imaginar.
            Já era de tarde, e os dois foram até a prefeitura ver qual burocracia eles precisariam passar para poder tirar aquela casa de suas vidas. Rafael suspirava fundo, pois como cursava direito ele sabia que situações assim teriam uma burocracia muito mais trabalhosa e exaustiva do que de costume. Gostava dessa área, mas odiava essa “necessidade de burocracia desnecessária” que havia no Brasil, pois em cerca de 80% dos casos, só servia para atrapalhar a vida das pessoas. Quando chegaram lá, foram informados que o oficial de justiça só estaria disponível na segunda feira, e isso lhes rendeu uma frustração muito grande. Por mais que fossem em uma festa rever os conhecidos naquela noite, ainda não gostavam de São Batista, e saber que eles teriam que passar um final de semana a toa ali já começava a lhes irritar.
            Conseguiram um bom hotel e não muito caro. Tinha ar condicionado e camas confortáveis. Ficaram lá e dormiram um pouco até a hora do churrasco. Rafael estava feliz de ir, mas nunca vira tanta empolgação em seu pai. Seu Manoel se sentia revigorado de ver seus velhos amigos, e por mais que agora fosse um homem da cidade grande, isso lhe daria a energia necessária para agüentar os dias árduos que viriam a seguir.
            O que mais Rafael viu no piquete foi homens com cabelo branco e bem humorados. Seu pai fora cumprimentado um por um, todos lhe saudando boas vindas e lhe oferecendo um lugar na grande mesa. Rafael de certa forma estava feliz pelo pai, pois nunca havia o visto rir e sorrir com tanto vigor quanto agora, mas ele estava se sentindo perdido ali. A cidade lhe mudara muito, e tudo aquilo era hostil para ele, por mais que fosse muito bem vindo entre aqueles homens.
            Depois de duas horas de um incomparável churrasco e de algumas cervejas, alguns dos homens mais próximos de seu pai começaram a ficar com a língua mais solta. Rafael não era de beber muito, e estava prestando bastante atenção no que eles falavam, pois o assunto era sobre a casa e aquele terreno.
            “Tchê Manoel, tu escapou de uma bronca das feias”, disse um velho com um volumoso bigode branco. “Aquele terreno passou por uns momentos bem ruins quando tu e tua família foram embora pra capital.” Seu Manoel indagou o porque, e quem continuou foi Rodrigo. “Aquele povo que tu vendeste a casa não durou muito. Eles tinham um filho já rapaz que tinha problema de cabeça e a coisa pirou depois que se mudaram pra ali. O rapaz gritava a noite toda, não deixava ninguém dormir. Não parava nem quando o pai dava uns bons relhaços no lombo. Ele só gritava que era muito fundo, escuro, mas que ele precisava entrar no poço. Foi assim por quase um ano e meio, até que certa noite ele não gritou. Todos dormiram feito pedra, e na outra manhã não achavam o guri, até que o pai foi tirar água do poço e ela tava cheia de sangue, do mesmo jeito que o teu filho buscou a água quando o teu mais velho morreu. Lá foi nós e achamos o rapaz louco no fundo do poço. Aquilo me caiu os butiá dos bolsos, pois era uma baita coincidência.” Rodrigo deu mais um grande gole na sua cerveja e quem continuou foi o mesmo velho de antes.
            “Depois disso, o pai vendeu a casa e todos foram embora pro Uruguai. A outra família era muito bonita, uma mulher quarentona de olhos azuis e cabelos louros, o homem também quarentão, careca, e forte que nem boi de cruza. Tinham dois filhos já rapazes fortes e uma menina linda, daria uma prenda que os rapazes iam briga de facão nos bailes. Os dois mais velhos certo dia começaram a se fresquear na frente de um trator, até que os dois caíram porque as raízes estavam altas. Eles não conseguiram sair a tempo, e o trator passou por cima deles. Aquela plantação de soja teve uma baita mancha vermelha e os guri ficaram parecendo boi num matadouro.” O velho parou um pouco, secou uma caneca de cerveja e continuou. “A mocinha do casal, depois de alguns meses, começou a andar enquanto dormia. Todo dia, os pais a viam andar em direção ao poço, até que uma noite eles dormiram demais e ela caiu lá. O homem não agüentou, e deu um tiro de espingarda na cabeça no mesmo dia.”
            Somente de saber aquela parte, Rafael estava ao mesmo tempo, fascinado e chocado. Até o momento não sabiam o que pensar. Outro homem, que ainda conservava alguns tufos de cabelo preto, continuou.
            “Depois disso, ninguém soube da mulher. Um casal comprou a casa logo depois, mas não ficaram nem um ano, pois diziam que aquele lugar tinha coisa ruim, que ninguém tava seguro ali por perto. Depois disso, a casa ficou parada por quase três anos, até que outra família comprou. Essa chegou a durar quatro anos, mas daí o mais novo que devia ter uns quatro anos, certo dia ficou com uma doença que nenhum curador nosso sabia dizer o que era. Nisso, os velhos se obrigaram a ir até uma cidade grande com posto de saúde ou hospital, pra ver o que era que o guri tinha. Eles ficaram quase quatro dias fora, e quando chegaram, o mais velho, que devia ter uns vinte anos e era meio desengonçado, caiu dentro do poço e morreu. Tempos depois, o mais novo voltou a ficar doente, mas dessa vez não deu tempo de fazer nada, pois o guri acordou morto. Essa família passou a casa pra outra gente, mas não chegou a vender, e esses daí não duraram muito antes de ir embora.” O velho se levantou em direção a churrasqueira, pois um homem relativamente mais jovem, havia o chamado. Rodrigo prosseguiu.
            “Depois disso a casa ficou parada mais um tempo até que foram pra lá um velho com a filha e os dois netos. Eles viveram bem felizes lá durante uns dois anos, até que uma noite o velho enlouqueceu. Saiu gritando pelos campos afora e ninguém viu ele por três dias. Quando voltou, o velho pegou o facão, matou a filha e os netos, arrastou o corpo deles pro meio das plantações, voltou e se jogou no poço.” Ele fez mais uma pausa para a cerveja. “Depois disso a casa ficou parada. Veio varias vezes oficiais de justiça, até que te encontraram em Porto Alegre. Dizem eles que não tem mais nenhum ‘dono’ da casa, então ela é tua e tem que decidir o que fazer.”
            Seu Manoel ficou apavorado com aquele relato, mas como já bebera um pouco, o seu pavor foi amenizado. Ele indagou o que o povo estava comentando a respeito daquele lugar. Rodrigo deu de ombros. “Alguns dizem que depois que o teu guri morreu, aquele terreno e aquele poço ficaram ruim de se viver. Outros dizem que é por causa do Coronel Peixoto.” Rafael ergueu uma sobrancelha e perguntou quem era esse. Quem lhe respondeu foi o velho do bigode. “É uma lenda que tem por aqui desde que acabou a escravatura. Durante a escravidão, muitos coronéis conseguiram acumular muito ouro e diamantes. Como havia os impostos, eles enterravam os tesouros pelos campos pra esconder do governo. Cada coronel tinha seu jeito de marcar o lugar. Uns colocavam uma cruz, outros enterravam entre duas arvores, outros perto de uma grota, mas o Coronel Peixoto tinha uma maneira muito estranha de marcar seus tesouros. Ele antes de enterrar, procurava alguém que estivesse sozinho e matava, depois ia pro meio do campo, enterrava o ouro e colocava o corpo do pobre coitado por cima. Depois que a escravatura terminou, ele foi buscar os ouros, mas ele nunca mais achou nem os corpos, nem as ossadas, e com isso ele vagou por essas terras durante anos a fio, cada dia enlouquecendo mais e mais, gritando pelos campos e quando encontrava um infeliz sozinho, ele ia lá e matava com o que tivesse na mão. Quando o velho não pode mais agüentar de tanto parafuso solto, ele pegou e se matou dentro de um poço. Dizem que quando ele caiu na água, ele começou a rir feito um condenado, até que ele morreu. Pelo o que dizem, ninguém se deu ao trabalho de tirar o corpo dele de lá.” Rafael indagou se o poço que ele se matara foi o do terreno em questão, mas Rodrigo deu uma breve risada e fez que não com a cabeça. “Meu rapaz, aquele terreno e aquele poço são muito antigos, mas não tanto assim. E isso é só uma lenda que os rapazes contam pros guris mais novos ficarem com medo de chegarem perto dos poços.”
            Depois disso, o assunto mudou tanto que Rafael não teve como perguntar mais coisas para aqueles homens. Quando viu que seu pai já estava ficando tonto, decidiu que era hora de irem embora. Todos os velhos foram abraçar Manoel, que estava muito feliz, embora chocado com aquela história. Rafael foi dirigindo para o hotel, e ficou com aquela historia toda na cabeça até a hora de dormir.
            E para dizer a verdade, até mesmo dormindo.
            Ele sonhou com seu irmão, Felipe. Ele andava sozinho em um grande pasto, caminhando na direção dele. Quando faltava cerca de cinco metros para o sorridente garoto chegar ao encontro de Rafael, o garoto parou. Seu olhar se perdeu e sangue escorreu pela sua boca. Rafael correu até ele, mas Felipe foi puxado para trás por alguma coisa invisível. O garoto gritou de dor, até que ele começou a ser arrastado pelo chão, até que mais adiante Rafael viu um poço. Felipe fora arrastado até o grande buraco escuro e foi puxado para dentro. Quando Rafael ouviu o som da água, o garoto começou a rir. “Venha marcar o tesouro!”, ele falava em um tom de brincadeira. Sem hesitar, e achando que tudo fosse uma brincadeira, Rafael sentiu um frio na barriga enquanto pulava dentro do poço.
            Acordou suando frio e ofegante. Suas mãos e queixo tremiam. Fazia muito calor, mas ele estava congelando. Foi até o ar condicionado e o desligou. Depois disso ele ficou apenas deitado, sem conseguir dormir, nem pensar naquela sensação de ter caído no poço.
            O fim de semana fora monótono, pois não havia nada para se fazer em São Batista. No final de domingo, Rafael decidiu ir até a casa e olhar novamente. Seu coração acelerou um pouco quando desceu do carro, e começava a escurecer. Ele não conseguia acreditar que um dia viveu em uma casa feita de barro, mas essa era a verdade. As paredes eram bastante fortes, com quase meio metro de espessura. A casa no geral estava bem maltratada e dava um pouco de pena de ver. Rafael se perguntava o que o governo faria com aquele terreno quando tomasse conta, pois se colocasse em um leilão que a casa era de barro, ninguém iria comprar.
            Rafael caminhou até o poço. Ele lembra que a borda parecia ser muito alta para ele quando era criança, mas naquele momento era pouco mais baixo que sua cintura. Se inclinou e olhou para dentro. Um vento forte bateu e ele sentiu um arrepio na espinha ao contemplar aquele grande buraco escuro. Era difícil de imaginar que um menino de apenas onze anos havia morrido ali, e mais difícil ainda de acreditar que varias outras pessoas também. Ele se perguntava se alguém tinha morrido ali antes do seu irmão, e de certa forma ele acreditava que sim. Aquele buraco negro era silencioso e sinistro, e mais os pelos da nuca de Rafael se arrepiavam ao olhar. Lembrou-se da frase de Nietzsche, “Cuidado ao encarar o abismo, ele te encara de volta”. Rafael tinha quase certeza que aquele poço o olhava, mas não sabia dizer por que ou como, mas sabia que ele estava fazendo isso. Quase tinha certeza. Lembrou-se do seu sonho, da sensação de ter pulado ali, e por um momento pensou porque não fazer isso? Talvez tivesse algo fascinante lá dentro, senão muitas pessoas não teriam morrido ao entrar ali.
            Afastou esses pensamentos enquanto dava três passos para trás. Aquele poço tinha algo de muito maligno, e Rafael agora sabia disso. Ele se perguntava por que nunca ninguém havia pensado em selar aquele poço, mas ai então olhou em volta e viu que não havia mais nenhum. Talvez aquele fosse o único poço em alguns quilômetros, e era menos trabalhoso ignorar aqueles fatos do que passar dias de trabalho para furar outro.
            Caminhou de volta para seu carro e dirigiu rumo ao hotel. Já era noite, e seu pai estava dormindo. No interior as pessoas dormiam muito cedo, e como não tinha absolutamente nada para fazer, foi dormir também.
            Rafael sonhou novamente com seu irmão. Ele estava parado na frente de um açude, com um pequeno caniço de taquara e um balde aos seus pés. Um homem vestido com bombachas caqui e uma camisa branca se aproximou por trás dele. O homem tinha uma faca estreita na mão direita e caminhava furtivamente. Felipe não se mexia, até que o homem o rendeu e cravou a faca entre as costelas do garoto. O homem então, que Rafael não pode ver o rosto por causa do chapéu, o arrastou por quase um quilômetro, até que jogou o menino sobre um monte de terra remexida. Assim que o homem foi embora, vários abutres desceram sobre o corpo do garoto e começaram a bicar sua carne.
            Rafael acordou, mas dessa vez não foi em um susto ou suando frio, e sim com uma grande inquietação. Ele estava com sono, mas não queria ficar na cama. Então se levantou cambaleante, e foi até o banheiro beber um pouco de água. Percebeu então que a água da torneira era levemente amarelada, e ele sabia que era água de poço. Tinha essa cor diferente, mas era pura também. Ao olhar para o ralo da pia, se lembrou da visão escura para o poço, e da sensação de ter ele lhe encarando de volta. Riu baixinho consigo mesmo e deu um soco bem fraco na borda da pia. Tudo ao seu redor estava lhe lembrando daquele maldito poço, e parecia que nada lhe dava sossego.
            Voltou para cama e dormiu sem sonhos até a manhã seguinte. No outro dia, logo de manhã, Rafael e seu Manoel estavam na porta da prefeitura para falar com o oficial de justiça. Uma coisa que lhes surpreendeu é que a prefeitura já tinha alguns planos para aquele terreno, e não teria tanta burocracia quanto Rafael imaginou. Talvez mais dois ou três dias e poderiam ir embora daquele lugar, e era o que ele mais queria. Nada ali lhe fazia bem, qualquer buraco escuro lhe lembrava aquele poço, e qualquer água que fosse levemente amarelada lhe lembrava a água de um maldito poço.
            E tudo ficava pior quando ele ia dormir, pois sempre sonhava com alguma coisa relacionada a poços ou o seu irmão morto. Até que na noite de quarta feira um sonho muito peculiar lhe invadiu o sono. Ele via seu irmão dentro do poço, desesperado e ferido. Ele tentava escalar a parede de tijolo maciço com algo volumoso nos bolsos, até que um homem emergiu da água. O pavor no olhar do garoto era algo que seguiria Rafael por toda a vida a partir dali. Era o mesmo homem que havia o assassinado no sonho anterior, mas dessa vez Rafael pode ver seu rosto. Tinha uma barba e cabelo por fazer, com vários fios grisalhos. Sua camisa branca estava levemente transparente por causa da água, e o chapéu de couro estava ruço e com as pontas desgastadas. Ele carregava um olhar que era uma mistura de emoções, e todas elas penetravam o coração de quem olhasse, mas sem nenhuma duvida era um homem que havia enlouquecido.
            Ele ergueu a mão e puxou um facão do fundo da água. Com a mão livre, agarrou Felipe pela camisa e o puxou com uma força impressionante de volta para a água. Ele ergueu o facão acima da cabeça e golpeou o pescoço do garoto algumas vezes. A água que antes era de um azul escuro tomou uma tonalidade carmesim por total e o homem começou a rir. Sua voz ecoava por todo o poço.
            Rafael acordou e se ergueu imediatamente. Pôs qualquer roupa e correu para o carro. Ele sabia que seu irmão precisava de ajuda, por mais que soubesse que ele estava morto a mais de trinta anos. Ele pensou em voltar varias vezes, mas não conseguia tirar o pé do acelerador. Deus, em que estava pensando? Que um homem maluco de uma lenda idiota teria assassinado seu irmão dentro do poço? Ele não sabia dizer, mas sabia que precisava ir até lá.
            Algo dentro dele achava que seria divertido e engraçado se atirar no poço.
            Ele pulou a cerca do terreno e caminhou até o poço. O céu ostentava belas estrelas, mas ele sequer prestou atenção nisso. Ele se curvou e contemplou o poço. Um grande buraco silencioso e solitário, e queria que ele entrasse. Rafael hesitou varias vezes, pois sabia que era loucura. Algo dentro de sua mente implorava para ele não fazer isso, mas de nada adiantava. Ele sentou na borda do poço e então lhe veio aquele frio na barriga, seguido pelo seu grito de desespero.
            Ele deve ter caído por menos de três segundos, mas para Rafael pareceu uma eternidade. Enquanto sentia a adrenalina lhe correr o sangue, uma forte dor correu pelo lado esquerdo de seu corpo. A água lhe afogou um grito de dor, até que em um gesto de desespero, Rafael nadou para a superfície da água, procurando oxigênio. A água era relativamente baixa, mas a dor não fazia ele ficar muito tempo de pé. Tudo isso fora embora, quando percebeu que de fato estava dentro do poço.
            Aquele lugar escuro tinha um clima pesado. Um ar macabro envolvia aquelas águas, e Rafael ficou em pânico. Tremia seu corpo todo ao imaginar todas aquelas pessoas morrendo ao cair ali. A primeira coisa que pensou era que a queda ou o afogamento os matava, mas o fato era que na verdade ele estava vivo. Com dor, tremendo de frio e medo, mas estava vivo.
            Rafael se sentou no fundo da água e sentiu algo do fundo. A principio ele achou que fossem pedras, mas eram muito achatadas e com relevos complexos. Ele ergueu um punhado daquelas coisas e lavou o barro com a água, e então o ar lhe saiu dos pulmões quando viu o que era. Brilhante e dourado, ali tinham um punhado de dobrões de ouro. Rafael começou a rir consigo mesmo com aquela descoberta. Enfiou a mão no fundo do barro e começou a pescar mais. Nesse momento, ele não sentia nenhuma dor ou sequer lembrou-se daquele clima macabro. Ele começou a catar todas as grandes e valiosas moedas que conseguia encontrar e pôs nos bolsos.
            Quando não conseguiu mais espaço no seu corpo para mais moedas, ele se levantou. A dor havia diminuído e pensou em escalar os tijolos maciços até a superfície. De fato, depois de uma rápida avaliação, percebeu que isso seria relativamente fácil. Não para uma criança ou para um velho, mas alguém da estatura dele conseguiria subir facilmente. Pôs a mão em um tijolo e percebeu que ele era bastante firme. Enquanto subia, percebera que precisava emagrecer, pois seria muito mais fácil se ele estivesse em forma. Ele ria consigo mesmo ao escalar.
            Mas ai então algo lhe agarrou com força. Rafael escorregou e caiu de volta na água, enquanto algo lhe segurava pelas roupas. Um desespero que ele não havia sentido em toda a sua vida começou a brotar em seu coração e gritou. Ele não conseguia ver o que era aquela coisa, mas ouvia sua voz. Era um rosnado pastoso e insano, e possuía uma força sobrenatural.
            “EU PRECISO MARCAR ESSE LUGAR!”, aquela coisa berrou. Rafael lutava para ficar com a cabeça acima da água, mas uma mão pesada lhe segurava com força. “EU PRECISO MARCAR PARA NÃO PERDER!” Aquela coisa rosnava em um grito gutural enfurecido, até que Rafael sentiu algo subir acima da água.
            Ele rezou para não ser o que ele pensava que era, mas de fato era um grande facão. A sua lamina era escura, rústica e com grandes manchas rubras. Em um ultimo ato, o homem abaixou a cabeça de Rafael na água e golpeou seu pescoço. A dor de antes era insignificante perto da que ele sentiu naquele momento. Uma ardência que descia por todo o seu corpo, e que seguia por jorradas de sangue. Depois sentiu outro golpe.
            Com isso, ele perdeu as forças e foi deixado na água. Sentiu todos os dobrões caírem de seus bolsos e a água invadindo seus pulmões. Uma mistura de emoções corria por seu corpo, mas Rafael não tinha nenhuma força para tentar reagir. Riu consigo mesmo, pensando em como a vida poderia ser irônica às vezes. Todos morreram pela tentação, inclusive ele mesmo, mas ninguém sabia até então do que. E agora que sabia, não podia fazer nada, a não ser ver a sua vida se esvaindo lentamente de seu corpo, enquanto seu sangue manchava a água do poço de vermelho.