Rafael não estava contente
em voltar para sua cidade natal, pois aquele lugar lhe dava tristeza. Mesmo já
sendo homem feito e seu pai um senhor de idade, ambos não conseguiam se
esquecer daqueles dias em que eles foram embora para Porto Alegre. Todos
gostavam do interior, mas ele não trazia boas memórias para ambos. E agora
estavam obrigados a ir até lá para resolver um problema que achavam que já
estava morto e enterrado. Ou afogado.
São Batista... Esse nome trazia a Rafael uma mistura de
medo e repulsa. Ele tinha apenas nove anos quando seu pai lhe dissera para
tirar água do poço pela primeira e única vez na sua vida. Ele sabia que era
arriscado fazer isso, então sentia um pouco de ansiedade e orgulho de ser
escolhido para buscar água, pois normalmente era seu irmão mais velho, Felipe,
que fazia essa tarefa.
Suas mãos relativamente pequenas seguravam o balde com
toda a força que dispunha. Era de ferro, e já vazio era bastante pesado para
uma criança da idade dele. Acreditava que ficaria ainda mais quando estivesse
cheio de água, e só rezava para não derrubar toda a água no chão. O poço ficava
a quase trinta metros da casa, em um lugar um pouco isolado do terreno da
família. Segundo seu irmão, Felipe, aquele poço já existia antes da casa ser
construída, e sempre havia água fresca nele. Nem mesmo seu pai sabia ao certo
quando ele fora construído, mas a julgar pelo limo e jeito das pedras que
calçavam as laterais do grande buraco, ele deveria ser muito antigo,
provavelmente com mais de cem anos.
Rafael sabia que precisava ser um balde de ferro para
pegar água do poço, pois assim ele enchia mais facilmente e corria menos risco
dele virar na subida de volta. Ele estava com bastante medo, pois sempre ouviu
historias de crianças que caiam dentro de poços quando tentavam tirar água,
pois se inclinavam demais e despencavam vários metros antes de morrer
lentamente com a água invadindo seus pulmões.
Ele tentava afastar esse pensamentos, mas infelizmente
eles estavam vindo a tona, principalmente quando precisou inclinar o corpo para
subir o balde a superfície. Rafael nem mesmo respirava, tanto pela grande força
que precisava fazer, quanto pelo medo de acabar caindo dentro daquele buraco
escuro e frio. Era assustador olhar para o fundo daquele poço, como se fosse
subir alguma coisa rastejando pelas paredes e emergindo na borda, assim puxando
crianças levadas para se afogarem lá.
Pelo o que sobrava de corda, faltava pouco para o balde
estar a sua disposição. Só estaria tranqüilo quando estivesse com ele nas mãos.
Ele achava que estaria tranqüilo com ele nas mãos, mas na verdade o pavor só
começou quando ele emergiu.
Pesava muito, e Rafael precisou usar as duas mãos para
carregar o balde de volta para casa. Seu pai lhe esperava com um sorriso quente
na porta da casa, e o menino tinha orgulho de si mesmo. Em sua doce fantasia de
criança, acreditava que em breve seu pai lhe levaria para atirar em algumas
marrecas, ou talvez lhe orientar para caçar alguns capinchos. Sentia-se um
rapaz agora que fora encarregado de tirar água do poço.
Essas fantasias foram podadas com o grito de horror de
pai ao pegar o balde.
Rafael não percebeu que a água, que naturalmente era
levemente amarelada, estava manchada de vermelho. Se fosse marrom, talvez eles
pensassem que o poço havia secado e tinha somente água barrenta agora, mas
aquela coisa no balde tinha cor de um vinho misturado com água. Seu pai,
Manoel, a principio pensou que seu filho havia pegado água de alguma poça ou no
açude ali perto, mas não tinha como. Acreditava no filho quando o mesmo disse
que a água vermelha veio do poço.
Rafael dando falta de seu irmão, foi quando seu pai e
vários outros homens desceram com cordas no poço, temendo que o pior havia
acontecido, e que de fato aconteceu. No interior do Rio Grande do Sul, os
homens naturalmente têm muita honra e dizem não chorar, mas Seu Manoel não
conseguiu conter as lágrimas de tristeza e remorso quando os homens tiraram seu
filho, Felipe, de dentro do poço. O menino sangrava pelo pescoço e seu corpo
estava inchado. Seus olhos parados e sem nenhum brilho, com a pele pálida e os
cabelos, um pouco por cortar, molhados e grudados no rosto.
Ninguém sabia dizer como que o menino havia caído dentro
do poço, pois ele só buscava água quando o pai o ordenava, e naquela manhã quem
fora buscar foi Rafael. A mãe deles, Iolanda, tinha certeza que os dois meninos
estavam em casa na noite anterior, e ele não havia saído.
A teoria mais provável era que o menino tinha acordado
antes do galo cantar, percebera que não havia água e fora buscar. Era verão e
fazia muito calor, portanto devia ter sede. A ausência de luz fez com que o
menino tropeçasse e caísse no poço, quebrando o pescoço e se afogando por não
conseguir se mexer,
Depois desse episodio lamentável, a família de Rafael não
conseguiu se manter naquele terreno por muito mais tempo. Cogitaram se mudar
para outro, mas teriam que furar outro poço e tinham criado trauma. Depois de
alguns meses, eles juntaram as fartas economias que tinham, venderam a casa e
se mudaram para a capital.
A vida para eles, por mais que tivessem algum dinheiro e
Seu Manoel conseguiu um bom emprego em seguida, foi muito difícil na cidade de
Porto Alegre. De fato, havia educação, saúde e segurança muito melhores do que
em São Batista, mas por mais que as condições de vida fossem relativamente
melhores, havia barulho. Muito barulho. E fumaça. Tudo parecia ser feito de
concreto, e nada parecia natural, embora em Porto Alegre ainda tivesse uma
farta quantidade de árvores.
O barulho era em qualquer lugar. De buzinas, aglomerado
de pessoas, fabricas, tudo. Parecia que na cidade grande não havia nada que não
fizesse algum barulho desagradável, nem mesmo as pessoas. No interior, por mais
que as pessoas das áreas mais urbanas dissessem que eles eram uns “grossos”,
entre eles as pessoas eram bastante educadas e unidas. Na cidade, a pequena
família recém chegada parecia ser estranha aos outros de quem soubessem de onde
viessem, e ninguém em Porto Alegre era unido. As pessoas eram mal educadas umas
com as outras, e se apegavam a pequenos grupos de amigos, e ninguém mais
importava.
Os primeiros tempos foram difíceis, mas aos poucos eles
foram entendendo que na cidade as coisas eram bem diferentes por razões
bastante justificáveis. Para começar, era uma cidade muito maior que São
Batista, não teria como as pessoas serem todas bastante unidas, mas aos poucos
perceberam que estavam errados sobre isso, pois quando precisavam de ajuda,
todos eram bastante solidários como no interior. Não tanto quanto, mas eram
também.
Sem contar que Porto Alegre é uma das maiores cidades do
Brasil, e um grande centro urbano e comercial. O barulho e o murmurinho eram
comuns nesse tipo de lugar. Entendendo isso, e conhecendo melhor o povo, a
família finalmente se sentiu em casa na nova cidade. Nunca se esqueceram de
suas raízes, mas finalmente se sentiram bem vindos na capital.
Durante trinta anos, muitas coisas aconteceram na vida
deles. Rafael arrumara um bom emprego e se casara, mas essa união não durou
mais que cinco anos, pois sua esposa veio a falecer decorrente de um câncer de
pulmão. Era uma mulher muito boa, mas adorava seus cigarros, e cerca de duas
carteiras por dia desde os quinze anos de idade lhe ceifou a vida com vinte e
nove anos.
A segunda a deixar
o mundo fora Dona Iolanda. Mas dessa vez, o câncer lhe atacara o intestino.
Todos estavam chorando no leito de morte da velha senhora, mas Rafael riu. As
duas mulheres mais importantes para ele morreram por causa de câncer. A vida é
muito irônica às vezes.
Depois disso, Rafael nunca mais se casou e visitava seu
pai regularmente. Eles eram muito ligados um com o outro, mas depois das duas
tristes perdas, três na verdade, eles se tornaram muito próximos um do outro.
Mais que pai e filho, eles eram amigos. Felizmente, ambos eram bastante
saudáveis e tinham dinheiro. Manoel, por mais que estivesse perto de se
aposentar, ainda trabalhava. Depois de tantos anos naquela metalúrgica, ele
aprendera muita coisa que lhe evoluiu como profissional e pessoa, e tinha a
filosofia de vida que um homem só adoece quando fica parado. Agarrado a isso,
nunca parou de trabalhar mesmo beirando os setenta anos. Rafael era um homem
inteligente, e com isso conseguira passar em um bom concurso publico. Ganhava
bem, o trabalho era leve e tinha tempo para cursar sua faculdade de direito e
visitar o pai regularmente.
Embora eles dois tivessem boas condições de saúde,
dinheiro e fossem muito próximos um do outro, eles eram bastante sozinhos. Com
o passar do tempo, eles foram perdendo contato com os antigos amigos que
fizeram logo depois dos “maus tempos de chegada à cidade grande”. Rafael tinha
alguns colegas do qual tomava uma cerveja na noite de sexta, mas não eram
exatamente pessoas com quem se podia contar. Por mais que ele não quisesse mais
se casar, ele sentia falta de ter alguém do seu lado, por mais que tivesse seu
pai.
Seu
Manoel era um gaucho típico. Saia nas suas folgas para passear, conhecer
pessoas novas, mas nunca mantinha as amizades que fazia. Não era porque ele não
gostasse, mas ele simplesmente não queria mais se apegar a novas pessoas. Já
perdera a esposa, um filho e a nora, não gostava da idéia de se tornar querido
por muitas pessoas, acabar morrendo e deixando todas com a mesma dor que ele
sentia em seu coração.
Era
aniversario de Rafael, e seu pai lhe chamou para vir até a sua casa. Eles
ouviram suas musicas prediletas, que variavam desde uma boa e velha musica
tradicional gaucha, até um bom rock n’ roll e musica eletrônica. Beberam
algumas cervejas e comeram um churrasco preparado por seu Manoel. Em todos os
aniversários de ambos, eles costumavam sempre chamar algumas pessoas, mas
naquele em especifico passaram sozinhos. Mas por mais que fosse assim, Rafael
achou uma das mais agradáveis celebrações que ele teve. Sempre tinham assuntos
para conversar e nunca ficavam de mal.
Mas
daí então surgiu um telefonema que nenhum deles esperava.
Era
um agente do governo lhes perguntando se eles eram donos da dita casa em São
Batista. Eles informaram que já moraram lá, a casa fora vendida há mais de
trinta anos. O homem lhes informou que desde então, aquele terreno tinha sido
vendido para seis nomes diferentes dentro desses trinta anos, e fazia cerca de
cinco que a casa estava completamente abandonada e sem ninguém com nenhuma
relação aos antigos donos para os assuntos de posse da residência. Caso eles
não quisessem ela de volta, o governo colocaria ela para leilão. Eles disseram
que não tinham nenhum interesse nela, mas mesmo assim, como não havia mais
nenhum “dono” e eles eram o mais próximo disso, eles precisariam viajar até a
cidade para assinar os papeis.
Um
calafrio subiu a espinha dos dois ao saber do que teriam que fazer. Acreditavam
que passariam por alguma burocracia e teriam que esperar alguns dias, e como
São Batista ficava muito longe de Porto Alegre, não era viável viajar varias
vezes para lá. Por isso estavam levando roupas e dinheiro para ficarem vários
dias.
Seu
Manoel dirigia o carro, e Rafael olhava pela janela. Os estepes verdes e cheios
de vida lhe trazia boas lembranças, que aos poucos eram invadidas pela imagem
de seu irmão afogado no poço e pelo balde com água vermelha. Tinha apenas nove
anos quando isso acontecera, mas as memórias estavam frescas em sua mente, o
que lhe dava a impressão de que tinha nove anos novamente e estava sentindo a
mesma angustia. Ele e seu irmão eram muito ligados, tanto quanto ele e seu pai
eram nos dias de hoje. Talvez gostasse tanto do velho Manoel porque de certa
forma lembrava o afeto que tinha por Felipe. Às vezes ele se pegava pensando em
como seria sua vida se o irmão não tivesse morrido. Se iriam se mudar para
Porto Alegre, ou o que quer que teria acontecido em suas vidas.
São
Batista, por mais que estivesse bastante diferente do que de costume, ainda
parecia a mesma cidade. O centro era parecido com Porto Alegre a cerca de dez
ou quinze anos atrás, mas ao redor parecia a mesma coisa. Nas redondezas da
cidade havia ainda casas feitas de barro e sapé, e os grandes campos de trigo,
arroz e soja deslumbravam a periferia do centro da cidade, porém Rafael se
lembrava que na década de 80, quando fora embora, o máximo que havia para
ajudar os trabalhadores eram alguns tratores muito precários, e agora os campos
eram maquinados com grandes colheitadeiras e tratores muito mais modernos.
Chegava ser um pouco irônico o fato de haver casas de
barro com maquinas tecnológicas trabalhando no campo. Lembrava-se que a sua
casa era feita de barro e pau-a-pique, que ele julgava já ter sido destruída. O
que deveria valer algum dinheiro e a razão dele e seu pai estarem ali era o
terreno, que tinha um tamanho bastante considerável, pois não havia uma “casa”
de verdade.
Quanto mais Rafael olhava aquelas paisagens, mais vontade
de ir embora tinha. Poderia ser aceitável para ele e a família viver nesse tipo
de lugar há trinta anos atrás, mas naquele momento parecia diferente de tudo o
que ele conhecia. Ele sempre acreditou que nunca tinha esquecido suas raízes,
mas a verdade era que de fato ele havia. Tudo ali era estranho e hostil, e nada
parecia aconchegante. Sentia falta do sinal de wifi para seu celular, de um
lugar com menos mosquitos e mais urbanizado.
Seu Manoel não sabia o que estava sentindo. Ele também
achava que iria se sentir em casa, mas na realidade aquilo era um lugar
estranho. Não era a mesma São Batista que havia nascido, se criado, casado,
tido dois filhos e perdido um. Por mais que o povo continuasse basicamente o
mesmo, ele achava que tinha mudado demais nesse tempo todo, a ponto de que sua
terra natal fosse estranha para ele.
Rafael se enganou quanto a sua antiga casa, pois ela
estava lá de pé e quase do mesmo jeito que era antes. Ele se arrependeu de ter
olhado no fundo do terreno, pois lá estava aquilo. A visão para aquele poço deu
um grande calafrio na espinha dele, e seu pai precisou diminuir a velocidade do
carro. As lembranças de ter tirado um pobre menino, que um dia fora seu filho,
totalmente molhado, o corpo inchado e pálido e os olhos parados e sem nenhum
brilho de dentro daquele poço... Ele não sabia o que fazer. Parecia que estava
sentindo a dor da perda naquele mesmo momento e chorou. Rafael abraçou o seu
pai pelos ombros e fez o possível para consolar seu velho. Ele tinha perdido a
esposa, a mãe e o irmão, mas nunca teve filhos para se colocar no lugar dele.
Leu uma vez que quando um filho perde um dos pais, ele sente perder sua
mortalidade, mas quando um pai enterra um filho, sente perder sua imortalidade.
Depois que Seu Manoel se recompôs, o velho avistou ao
longe um velho amigo de infância. Ele foi obrigado a parar o carro para ir até
lá dar um abraço. Um senhor calvo com um cavanhaque branco lhe cumprimentou com
um grande sorriso no rosto. Rafael se perguntava como os dois haviam se
reconhecido sendo que se passaram tantos anos, mas relevou. Ele se chamava
Rodrigo, o que Rafael achou curioso, pois “Rodrigo” parecia um nome bastante
jovial, e era estranho vê-lo em um senhor de idade avançada. Rodrigo e Manoel
ficaram conversando por poucos minutos, até que o velho percebeu que precisava
ir embora. Ele convidou os dois visitantes de São Batista para um churrasco no
piquete, que Rafael tinha uma vaga lembrança de qual se tratava, que ocorreria
naquela mesma noite. Ambos aceitaram com muito entusiasmo. Mesmo eles comendo
fartos e deliciosos churrascos em Porto Alegre, no interior ele era diferente.
Muito mais gostoso e tradicional, a carne era sem nenhum conservante e o único
tempero era o bom e velho sal grosso. Lhes deu água na boca só de imaginar.
Já era de tarde, e os dois foram até a prefeitura ver
qual burocracia eles precisariam passar para poder tirar aquela casa de suas
vidas. Rafael suspirava fundo, pois como cursava direito ele sabia que
situações assim teriam uma burocracia muito mais trabalhosa e exaustiva do que
de costume. Gostava dessa área, mas odiava essa “necessidade de burocracia
desnecessária” que havia no Brasil, pois em cerca de 80% dos casos, só servia
para atrapalhar a vida das pessoas. Quando chegaram lá, foram informados que o
oficial de justiça só estaria disponível na segunda feira, e isso lhes rendeu
uma frustração muito grande. Por mais que fossem em uma festa rever os
conhecidos naquela noite, ainda não gostavam de São Batista, e saber que eles
teriam que passar um final de semana a toa ali já começava a lhes irritar.
Conseguiram um bom hotel e não muito caro. Tinha ar
condicionado e camas confortáveis. Ficaram lá e dormiram um pouco até a hora do
churrasco. Rafael estava feliz de ir, mas nunca vira tanta empolgação em seu
pai. Seu Manoel se sentia revigorado de ver seus velhos amigos, e por mais que
agora fosse um homem da cidade grande, isso lhe daria a energia necessária para
agüentar os dias árduos que viriam a seguir.
O que mais Rafael viu no piquete foi homens com cabelo
branco e bem humorados. Seu pai fora cumprimentado um por um, todos lhe
saudando boas vindas e lhe oferecendo um lugar na grande mesa. Rafael de certa
forma estava feliz pelo pai, pois nunca havia o visto rir e sorrir com tanto
vigor quanto agora, mas ele estava se sentindo perdido ali. A cidade lhe mudara
muito, e tudo aquilo era hostil para ele, por mais que fosse muito bem vindo
entre aqueles homens.
Depois de duas horas de um incomparável churrasco e de
algumas cervejas, alguns dos homens mais próximos de seu pai começaram a ficar
com a língua mais solta. Rafael não era de beber muito, e estava prestando
bastante atenção no que eles falavam, pois o assunto era sobre a casa e aquele
terreno.
“Tchê Manoel, tu escapou de uma bronca das feias”, disse
um velho com um volumoso bigode branco. “Aquele terreno passou por uns momentos
bem ruins quando tu e tua família foram embora pra capital.” Seu Manoel indagou
o porque, e quem continuou foi Rodrigo. “Aquele povo que tu vendeste a casa não
durou muito. Eles tinham um filho já rapaz que tinha problema de cabeça e a
coisa pirou depois que se mudaram pra ali. O rapaz gritava a noite toda, não
deixava ninguém dormir. Não parava nem quando o pai dava uns bons relhaços no
lombo. Ele só gritava que era muito fundo, escuro, mas que ele precisava entrar
no poço. Foi assim por quase um ano e meio, até que certa noite ele não gritou.
Todos dormiram feito pedra, e na outra manhã não achavam o guri, até que o pai
foi tirar água do poço e ela tava cheia de sangue, do mesmo jeito que o teu
filho buscou a água quando o teu mais velho morreu. Lá foi nós e achamos o
rapaz louco no fundo do poço. Aquilo me caiu os butiá dos bolsos, pois era uma
baita coincidência.” Rodrigo deu mais um grande gole na sua cerveja e quem
continuou foi o mesmo velho de antes.
“Depois disso, o pai vendeu a casa e todos foram embora
pro Uruguai. A outra família era muito bonita, uma mulher quarentona de olhos
azuis e cabelos louros, o homem também quarentão, careca, e forte que nem boi
de cruza. Tinham dois filhos já rapazes fortes e uma menina linda, daria uma
prenda que os rapazes iam briga de facão nos bailes. Os dois mais velhos certo
dia começaram a se fresquear na frente de um trator, até que os dois caíram
porque as raízes estavam altas. Eles não conseguiram sair a tempo, e o trator
passou por cima deles. Aquela plantação de soja teve uma baita mancha vermelha
e os guri ficaram parecendo boi num matadouro.” O velho parou um pouco, secou
uma caneca de cerveja e continuou. “A mocinha do casal, depois de alguns meses,
começou a andar enquanto dormia. Todo dia, os pais a viam andar em direção ao
poço, até que uma noite eles dormiram demais e ela caiu lá. O homem não
agüentou, e deu um tiro de espingarda na cabeça no mesmo dia.”
Somente de saber aquela parte, Rafael estava ao mesmo
tempo, fascinado e chocado. Até o momento não sabiam o que pensar. Outro homem,
que ainda conservava alguns tufos de cabelo preto, continuou.
“Depois disso, ninguém soube da mulher. Um casal comprou
a casa logo depois, mas não ficaram nem um ano, pois diziam que aquele lugar
tinha coisa ruim, que ninguém tava seguro ali por perto. Depois disso, a casa
ficou parada por quase três anos, até que outra família comprou. Essa chegou a
durar quatro anos, mas daí o mais novo que devia ter uns quatro anos, certo dia
ficou com uma doença que nenhum curador nosso sabia dizer o que era. Nisso, os
velhos se obrigaram a ir até uma cidade grande com posto de saúde ou hospital,
pra ver o que era que o guri tinha. Eles ficaram quase quatro dias fora, e
quando chegaram, o mais velho, que devia ter uns vinte anos e era meio
desengonçado, caiu dentro do poço e morreu. Tempos depois, o mais novo voltou a
ficar doente, mas dessa vez não deu tempo de fazer nada, pois o guri acordou
morto. Essa família passou a casa pra outra gente, mas não chegou a vender, e
esses daí não duraram muito antes de ir embora.” O velho se levantou em direção
a churrasqueira, pois um homem relativamente mais jovem, havia o chamado.
Rodrigo prosseguiu.
“Depois disso a casa ficou parada mais um tempo até que
foram pra lá um velho com a filha e os dois netos. Eles viveram bem felizes lá
durante uns dois anos, até que uma noite o velho enlouqueceu. Saiu gritando
pelos campos afora e ninguém viu ele por três dias. Quando voltou, o velho
pegou o facão, matou a filha e os netos, arrastou o corpo deles pro meio das
plantações, voltou e se jogou no poço.” Ele fez mais uma pausa para a cerveja.
“Depois disso a casa ficou parada. Veio varias vezes oficiais de justiça, até
que te encontraram em Porto Alegre. Dizem eles que não tem mais nenhum ‘dono’
da casa, então ela é tua e tem que decidir o que fazer.”
Seu Manoel ficou apavorado com aquele relato, mas como já
bebera um pouco, o seu pavor foi amenizado. Ele indagou o que o povo estava
comentando a respeito daquele lugar. Rodrigo deu de ombros. “Alguns dizem que
depois que o teu guri morreu, aquele terreno e aquele poço ficaram ruim de se
viver. Outros dizem que é por causa do Coronel Peixoto.” Rafael ergueu uma
sobrancelha e perguntou quem era esse. Quem lhe respondeu foi o velho do
bigode. “É uma lenda que tem por aqui desde que acabou a escravatura. Durante a
escravidão, muitos coronéis conseguiram acumular muito ouro e diamantes. Como
havia os impostos, eles enterravam os tesouros pelos campos pra esconder do
governo. Cada coronel tinha seu jeito de marcar o lugar. Uns colocavam uma
cruz, outros enterravam entre duas arvores, outros perto de uma grota, mas o
Coronel Peixoto tinha uma maneira muito estranha de marcar seus tesouros. Ele
antes de enterrar, procurava alguém que estivesse sozinho e matava, depois ia
pro meio do campo, enterrava o ouro e colocava o corpo do pobre coitado por
cima. Depois que a escravatura terminou, ele foi buscar os ouros, mas ele nunca
mais achou nem os corpos, nem as ossadas, e com isso ele vagou por essas terras
durante anos a fio, cada dia enlouquecendo mais e mais, gritando pelos campos e
quando encontrava um infeliz sozinho, ele ia lá e matava com o que tivesse na
mão. Quando o velho não pode mais agüentar de tanto parafuso solto, ele pegou e
se matou dentro de um poço. Dizem que quando ele caiu na água, ele começou a
rir feito um condenado, até que ele morreu. Pelo o que dizem, ninguém se deu ao
trabalho de tirar o corpo dele de lá.” Rafael indagou se o poço que ele se
matara foi o do terreno em questão, mas Rodrigo deu uma breve risada e fez que
não com a cabeça. “Meu rapaz, aquele terreno e aquele poço são muito antigos,
mas não tanto assim. E isso é só uma lenda que os rapazes contam pros guris
mais novos ficarem com medo de chegarem perto dos poços.”
Depois disso, o assunto mudou tanto que Rafael não teve
como perguntar mais coisas para aqueles homens. Quando viu que seu pai já
estava ficando tonto, decidiu que era hora de irem embora. Todos os velhos
foram abraçar Manoel, que estava muito feliz, embora chocado com aquela
história. Rafael foi dirigindo para o hotel, e ficou com aquela historia toda
na cabeça até a hora de dormir.
E para dizer a verdade, até mesmo dormindo.
Ele sonhou com seu irmão, Felipe. Ele andava sozinho em
um grande pasto, caminhando na direção dele. Quando faltava cerca de cinco
metros para o sorridente garoto chegar ao encontro de Rafael, o garoto parou.
Seu olhar se perdeu e sangue escorreu pela sua boca. Rafael correu até ele, mas
Felipe foi puxado para trás por alguma coisa invisível. O garoto gritou de dor,
até que ele começou a ser arrastado pelo chão, até que mais adiante Rafael viu
um poço. Felipe fora arrastado até o grande buraco escuro e foi puxado para
dentro. Quando Rafael ouviu o som da água, o garoto começou a rir. “Venha
marcar o tesouro!”, ele falava em um tom de brincadeira. Sem hesitar, e achando
que tudo fosse uma brincadeira, Rafael sentiu um frio na barriga enquanto
pulava dentro do poço.
Acordou suando frio e ofegante. Suas mãos e queixo
tremiam. Fazia muito calor, mas ele estava congelando. Foi até o ar
condicionado e o desligou. Depois disso ele ficou apenas deitado, sem conseguir
dormir, nem pensar naquela sensação de ter caído no poço.
O fim de semana fora monótono, pois não havia nada para
se fazer em São Batista. No final de domingo, Rafael decidiu ir até a casa e
olhar novamente. Seu coração acelerou um pouco quando desceu do carro, e
começava a escurecer. Ele não conseguia acreditar que um dia viveu em uma casa
feita de barro, mas essa era a verdade. As paredes eram bastante fortes, com
quase meio metro de espessura. A casa no geral estava bem maltratada e dava um
pouco de pena de ver. Rafael se perguntava o que o governo faria com aquele
terreno quando tomasse conta, pois se colocasse em um leilão que a casa era de
barro, ninguém iria comprar.
Rafael caminhou até o poço. Ele lembra que a borda
parecia ser muito alta para ele quando era criança, mas naquele momento era
pouco mais baixo que sua cintura. Se inclinou e olhou para dentro. Um vento
forte bateu e ele sentiu um arrepio na espinha ao contemplar aquele grande
buraco escuro. Era difícil de imaginar que um menino de apenas onze anos havia
morrido ali, e mais difícil ainda de acreditar que varias outras pessoas
também. Ele se perguntava se alguém tinha morrido ali antes do seu irmão, e de
certa forma ele acreditava que sim. Aquele buraco negro era silencioso e
sinistro, e mais os pelos da nuca de Rafael se arrepiavam ao olhar. Lembrou-se
da frase de Nietzsche, “Cuidado ao encarar o abismo, ele te encara de volta”.
Rafael tinha quase certeza que aquele poço o olhava, mas não sabia dizer por que
ou como, mas sabia que ele estava fazendo isso. Quase tinha certeza. Lembrou-se
do seu sonho, da sensação de ter pulado ali, e por um momento pensou porque não
fazer isso? Talvez tivesse algo fascinante lá dentro, senão muitas pessoas não
teriam morrido ao entrar ali.
Afastou esses pensamentos enquanto dava três passos para
trás. Aquele poço tinha algo de muito maligno, e Rafael agora sabia disso. Ele
se perguntava por que nunca ninguém havia pensado em selar aquele poço, mas ai
então olhou em volta e viu que não havia mais nenhum. Talvez aquele fosse o
único poço em alguns quilômetros, e era menos trabalhoso ignorar aqueles fatos
do que passar dias de trabalho para furar outro.
Caminhou de volta para seu carro e dirigiu rumo ao hotel.
Já era noite, e seu pai estava dormindo. No interior as pessoas dormiam muito
cedo, e como não tinha absolutamente nada para fazer, foi dormir também.
Rafael sonhou novamente com seu irmão. Ele estava parado
na frente de um açude, com um pequeno caniço de taquara e um balde aos seus
pés. Um homem vestido com bombachas caqui e uma camisa branca se aproximou por
trás dele. O homem tinha uma faca estreita na mão direita e caminhava
furtivamente. Felipe não se mexia, até que o homem o rendeu e cravou a faca
entre as costelas do garoto. O homem então, que Rafael não pode ver o rosto por
causa do chapéu, o arrastou por quase um quilômetro, até que jogou o menino
sobre um monte de terra remexida. Assim que o homem foi embora, vários abutres
desceram sobre o corpo do garoto e começaram a bicar sua carne.
Rafael acordou, mas dessa vez não foi em um susto ou
suando frio, e sim com uma grande inquietação. Ele estava com sono, mas não
queria ficar na cama. Então se levantou cambaleante, e foi até o banheiro beber
um pouco de água. Percebeu então que a água da torneira era levemente
amarelada, e ele sabia que era água de poço. Tinha essa cor diferente, mas era
pura também. Ao olhar para o ralo da pia, se lembrou da visão escura para o
poço, e da sensação de ter ele lhe encarando de volta. Riu baixinho consigo
mesmo e deu um soco bem fraco na borda da pia. Tudo ao seu redor estava lhe
lembrando daquele maldito poço, e parecia que nada lhe dava sossego.
Voltou para cama e dormiu sem sonhos até a manhã
seguinte. No outro dia, logo de manhã, Rafael e seu Manoel estavam na porta da
prefeitura para falar com o oficial de justiça. Uma coisa que lhes surpreendeu
é que a prefeitura já tinha alguns planos para aquele terreno, e não teria
tanta burocracia quanto Rafael imaginou. Talvez mais dois ou três dias e
poderiam ir embora daquele lugar, e era o que ele mais queria. Nada ali lhe
fazia bem, qualquer buraco escuro lhe lembrava aquele poço, e qualquer água que
fosse levemente amarelada lhe lembrava a água de um maldito poço.
E tudo ficava pior quando ele ia dormir, pois sempre
sonhava com alguma coisa relacionada a poços ou o seu irmão morto. Até que na
noite de quarta feira um sonho muito peculiar lhe invadiu o sono. Ele via seu
irmão dentro do poço, desesperado e ferido. Ele tentava escalar a parede de
tijolo maciço com algo volumoso nos bolsos, até que um homem emergiu da água. O
pavor no olhar do garoto era algo que seguiria Rafael por toda a vida a partir
dali. Era o mesmo homem que havia o assassinado no sonho anterior, mas dessa
vez Rafael pode ver seu rosto. Tinha uma barba e cabelo por fazer, com vários
fios grisalhos. Sua camisa branca estava levemente transparente por causa da
água, e o chapéu de couro estava ruço e com as pontas desgastadas. Ele
carregava um olhar que era uma mistura de emoções, e todas elas penetravam o
coração de quem olhasse, mas sem nenhuma duvida era um homem que havia
enlouquecido.
Ele ergueu a mão e puxou um facão do fundo da água. Com a
mão livre, agarrou Felipe pela camisa e o puxou com uma força impressionante de
volta para a água. Ele ergueu o facão acima da cabeça e golpeou o pescoço do
garoto algumas vezes. A água que antes era de um azul escuro tomou uma
tonalidade carmesim por total e o homem começou a rir. Sua voz ecoava por todo
o poço.
Rafael acordou e se ergueu imediatamente. Pôs qualquer
roupa e correu para o carro. Ele sabia que seu irmão precisava de ajuda, por
mais que soubesse que ele estava morto a mais de trinta anos. Ele pensou em
voltar varias vezes, mas não conseguia tirar o pé do acelerador. Deus, em que
estava pensando? Que um homem maluco de uma lenda idiota teria assassinado seu
irmão dentro do poço? Ele não sabia dizer, mas sabia que precisava ir até lá.
Algo dentro dele achava que seria divertido e engraçado
se atirar no poço.
Ele pulou a cerca do terreno e caminhou até o poço. O céu
ostentava belas estrelas, mas ele sequer prestou atenção nisso. Ele se curvou e
contemplou o poço. Um grande buraco silencioso e solitário, e queria que ele
entrasse. Rafael hesitou varias vezes, pois sabia que era loucura. Algo dentro
de sua mente implorava para ele não fazer isso, mas de nada adiantava. Ele
sentou na borda do poço e então lhe veio aquele frio na barriga, seguido pelo
seu grito de desespero.
Ele deve ter caído por menos de três segundos, mas para
Rafael pareceu uma eternidade. Enquanto sentia a adrenalina lhe correr o
sangue, uma forte dor correu pelo lado esquerdo de seu corpo. A água lhe afogou
um grito de dor, até que em um gesto de desespero, Rafael nadou para a
superfície da água, procurando oxigênio. A água era relativamente baixa, mas a
dor não fazia ele ficar muito tempo de pé. Tudo isso fora embora, quando
percebeu que de fato estava dentro do poço.
Aquele lugar escuro tinha um clima pesado. Um ar macabro
envolvia aquelas águas, e Rafael ficou em pânico. Tremia seu corpo todo ao
imaginar todas aquelas pessoas morrendo ao cair ali. A primeira coisa que
pensou era que a queda ou o afogamento os matava, mas o fato era que na verdade
ele estava vivo. Com dor, tremendo de frio e medo, mas estava vivo.
Rafael se sentou no fundo da água e sentiu algo do fundo.
A principio ele achou que fossem pedras, mas eram muito achatadas e com relevos
complexos. Ele ergueu um punhado daquelas coisas e lavou o barro com a água, e
então o ar lhe saiu dos pulmões quando viu o que era. Brilhante e dourado, ali
tinham um punhado de dobrões de ouro. Rafael começou a rir consigo mesmo com
aquela descoberta. Enfiou a mão no fundo do barro e começou a pescar mais.
Nesse momento, ele não sentia nenhuma dor ou sequer lembrou-se daquele clima
macabro. Ele começou a catar todas as grandes e valiosas moedas que conseguia
encontrar e pôs nos bolsos.
Quando não conseguiu mais espaço no seu corpo para mais
moedas, ele se levantou. A dor havia diminuído e pensou em escalar os tijolos
maciços até a superfície. De fato, depois de uma rápida avaliação, percebeu que
isso seria relativamente fácil. Não para uma criança ou para um velho, mas
alguém da estatura dele conseguiria subir facilmente. Pôs a mão em um tijolo e
percebeu que ele era bastante firme. Enquanto subia, percebera que precisava
emagrecer, pois seria muito mais fácil se ele estivesse em forma. Ele ria
consigo mesmo ao escalar.
Mas ai então algo lhe agarrou com força. Rafael escorregou
e caiu de volta na água, enquanto algo lhe segurava pelas roupas. Um desespero
que ele não havia sentido em toda a sua vida começou a brotar em seu coração e
gritou. Ele não conseguia ver o que era aquela coisa, mas ouvia sua voz. Era um
rosnado pastoso e insano, e possuía uma força sobrenatural.
“EU PRECISO MARCAR ESSE LUGAR!”, aquela coisa berrou.
Rafael lutava para ficar com a cabeça acima da água, mas uma mão pesada lhe
segurava com força. “EU PRECISO MARCAR PARA NÃO PERDER!” Aquela coisa rosnava
em um grito gutural enfurecido, até que Rafael sentiu algo subir acima da água.
Ele rezou para não ser o que ele pensava que era, mas de
fato era um grande facão. A sua lamina era escura, rústica e com grandes
manchas rubras. Em um ultimo ato, o homem abaixou a cabeça de Rafael na água e
golpeou seu pescoço. A dor de antes era insignificante perto da que ele sentiu
naquele momento. Uma ardência que descia por todo o seu corpo, e que seguia por
jorradas de sangue. Depois sentiu outro golpe.
Com isso, ele perdeu as forças e foi
deixado na água. Sentiu todos os dobrões caírem de seus bolsos e a água
invadindo seus pulmões. Uma mistura de emoções corria por seu corpo, mas Rafael
não tinha nenhuma força para tentar reagir. Riu consigo mesmo, pensando em como
a vida poderia ser irônica às vezes. Todos morreram pela tentação, inclusive
ele mesmo, mas ninguém sabia até então do que. E agora que sabia, não podia
fazer nada, a não ser ver a sua vida se esvaindo lentamente de seu corpo,
enquanto seu sangue manchava a água do poço de vermelho.