Deus do céu, quem diria que
tudo isso começou com uma simples brincadeira entre amigos? Tudo ia tão bem à
minha vida, e me revolta o fato de nada disso ter lógica. Uma brincadeira
estúpida de um monte de barbados bêbados, e não tinha nada de perigoso. Era só
um telefonema para o próprio numero, e nada mais do que isso.
Eu tinha vinte e três anos quando sai da casa dos meus
pais. Eu trabalhava desde o final do colégio, tinha já um curso técnico e
estava estável em minha vida. Mas deixe-lhes dizer, enquanto me há um pingo de
sanidade mental, que desde os meus doze anos de idade eu venho mudando minha
personalidade. Antes, eu era uma criança alegre, obediente, dita inteligente e
que vários adultos da época gostavam de mim, mas isso começou a mudar.
Eu passei a ser um pouco mais recluso, muitas vezes
cancelando muitos compromissos com meus amigos para ficar em casa jogando
vídeo-game ou lendo. Nunca gostei de estudar, mas nas matérias que eu tinha
interesse, ninguém era melhor do que eu. Eu tinha poucos amigos, mas quase
todos eles eu guardei até pouco tempo atrás, e parte de mim morria de vergonha
e inveja que quando aos quatorze anos, vários deles diziam sobre seus casos com
meninas, e quando era indagado sobre isso, muitas vezes ou ficava quieto ou
mentia. A mentira sempre foi uma grande aliada minha contra isso, mas nunca
inventava grandes historias para não levantar suspeitas, apenas o suficiente
para ter minha própria consciência tranqüila.
Mas nunca se consegue mentir e enrolar os pais por muito
tempo, e isso só se aprende quanto mais você acha que está indo bem. Eu dizia
que estava estudando e indo bem na escola, e quando vinha o final do ano, eu
estava quase reprovado. Mentiras que todo adolescente faz para proteger suas
altas quantidades de horas diretas na frente do computador ou do vídeo-game, e
depois de certa maturidade mental, você percebe o quanto foi burro e ridículo.
A base dessas mentiras, eu consegui ficar com uma garota pela primeira vez aos
meus dezesseis anos de idade, e ao contrario do que eu imaginei, não foram as
mil maravilhas do que todos os meus amigos disseram. Não tinha duvidas quanto a
minha sexualidade, mas não era algo de tão estonteante e vigorante quanto eu
imaginei que fosse, era apenas você trocando babinha com uma pessoa do sexo
oposto para se sentir membro do seu grupo social e ter um pouco de falsa
autoconfiança.
Pelo fato de eu ser recluso e preguiçoso, os meus pais
haviam adotado um bordão que era citado aos berros: “Você nunca faz nada”,
“Está sempre dentro desse quarto”, “Só eu que trabalho nessa casa”, e outro
monte de lixo verbal que se escapa da boca dos pais quando os filhos ainda são
jovens e querem se descobrir. Até entendo que naquela época eles estavam
corretos quanto as minhas atitudes, mas logo após a escola isso mudou.
Quando você recebe o seu diploma no final do ensino
médio, você acha que tudo será as mil maravilhas, pois finalmente acabou a
escola, mas a realidade é que você se sente pesado. Você de certa forma não
consegue digerir a idéia que a sua moleza acabou e que vai finalmente começar a
ter inúmeras responsabilidades. Com isso, as pessoas podem adotar duas
posturas, ou enrolam os pais por mais um tempo até conseguirem entender isso,
ou entram em desespero e começam a querer se “estabilizar” o mais depressa
possível. Eu fui o segundo, e nessa época que você começa a fazer um milhão de
planos e em certo ponto todos eles parecem ser inviáveis.
No final das contas, o que eu fiz foi começar um curso
técnico e trabalhar como aprendiz em uma loja. Durante esse período, eu jogava
e ficava no computador só quando podia, que eram raras ocasiões, e meus pais me
pegavam justamente quando eu “podia” ter algum lazer com aqueles mesmos bordões
de antes. E isso irrita qualquer pessoa que já tem várias coisas na cabeça,
pois por mais que você comece a ajudar nas contas de casa e esteja começando a
construir a sua vida, você ainda é tarjado como alguém que é um vagabundo? Isso
foi começando a me irritar, e cada vez mais eu ia me estressando com eles, a
ponto de que eu me obrigava a ficar fora de casa nas minhas horas livres para
não precisar ver o rosto deles, mesmo que eu odiasse sair para fazer coisas de “jovens
comuns”, como beber e ir para balada.
Quando me formei em meu curso, compareceram meus poucos
amigos e meus pais. O sorriso falso no rosto deles me enojava, mas como um bom
mentiroso que era, também sorri. Naquele momento, o que eu mais queria era
procurar um emprego na área onde eu tinha cursado e um apartamento para sair da
casa dos meus pais. Quando consegui esses meus dois objetivos, eles pareciam
surpresos ou até mesmo chocados ao saberem que eu estava partindo. Eu senti
muita vontade de vomitar em cima deles tudo o que estava embrulhando o meu
estomago por todos esses anos, mas apenas disse “tchau” e fui embora.
O fato também é que a vida é muito estranha quando se sai
de casa em um momento de raiva, pois muitas vezes você se pergunta se o que fez
foi o certo, será que você não fazia nada mesmo, dentre várias outras coisas.
Mas como tudo, você acaba se acostumando e é pouco estranha essa sua liberdade
que você conquista. Por mais que você ache que planejou tudo, que tem seu
dinheiro contado, sempre lhe vem alguma surpresa, e você ai começa a sentir o
peso da vida adulta nas costas. Como disse antes, você se acostuma, mas essa
liberdade é tão “grande” que nem sempre se sabe o que faz. Uma analogia que fiz
comigo mesmo foi que eu era como um cachorro correndo atrás de um carro, eu não
saberia o que faria se pegasse um. Eu havia pegado um carro, e não sabia se
mijava nas rodas, ou roia o estofado, se me abrigava da chuva nele, eu não
sabia de nada, era só eu sozinho em um apartamento com um emprego, que por mais
que eu gostasse, sabia que não conseguiria agüentar por muito tempo. Para ser
honesto, eu odiava meu emprego. Eu só ficava nele porque o salário era bom para
se viver sozinho e eu queria sair da casa de meus pais. Muitas vezes eu fiquei
me perguntando sobre o que eu havia feito, e se foi certo, mas acima de tudo,
eu me perguntava o porque eu estava nesse mundo, se eu tinha um emprego que
odiava, estava sozinho e sempre que eu encontrava meus amigos toda novidade que
eu tinha para contar era as novas mentiras e ilusões que eu havia criado nas
noites que eu não conseguia dormir.
Certa noite eu os convidei para vir a minha casa. Comprei
alguns petiscos e eles trouxeram bastante cerveja e vodca. Acho que a única
coisa de “um jovem normal” que eu faço é beber. Não me agradava o gosto amargo,
ou cítrico ou até mesmo forte da vodca, a não ser se misturado com varias
outras coisas doces, como refrigerantes e energéticos. O que mais me agradava
era o efeito. Aquela tontura e aquela sensação de não precisar esconder nada de
ninguém, de poder contar a mentira que fosse, a verdade que fosse, ninguém se
importava. Todos estariam bêbados, e mesmo que não estivessem, não relevariam
os assuntos de um rapaz alcoolizado.
Mas eu não tinha nem sequer começado a me intoxicar,
devido a minha constituição razoavelmente alta, quando um amigo meu teve a
ridícula idéia de ligar para o próprio numero. Todos seguiram a mesma linha de
raciocínio que a minha, que era completamente ridículo aquela coisa de ligar
para si mesmo, pois o máximo que aconteceria era cair na caixa postal. Outro
amigo acabou cedendo e sacou o celular. Discou o próprio numero e ficou quase
um minuto com ele no ouvido para somente dar de ombros e rir da própria
estupidez. Assim acabou que todos o fizeram, exceto eu. Era algo tão ridículo
que nem mesmo iria discutir, apenas não iria fazer e pronto.
Naquela noite, eu estava razoavelmente sóbrio quando
todos foram embora. Limpei a sujeira que havia sobrado, coloquei tudo no seu
devido lugar, esvaziei na pia o resto de vodca que havia sobrado e avistei meu
celular. Tomei ele nas mãos e mandei uma mensagem para saber se eles estavam
bem, mas não me lembro se obtive alguma resposta, apenas sei o que aconteceu em
seguida.
Rindo sozinho em meu apartamento, eu comecei a discar o
meu próprio numero. Eu tentei me lembrar o porque eles queriam fazer isso, e em
uma memória estranhamente embaçada, o que eu me recordava era que segundo o meu
amigo, que havia sugerido isso e estava cursando rede de computadores, havia
uma pequena probabilidade de que nós pudéssemos ouvir o que dissemos naquele
momento vindo pelo próprio celular. Era uma coisa ridícula, por mais que ele
desse razões técnicas para isso, mas eu fiz. Seria engraçado ouvir minha voz
duplicada pelo celular.
Mas logo depois do terceiro toque, o que aconteceu até
agora eu não sei dizer o que foi.
“O que foi?! Não vê que estou morto?!” disse uma voz que
eu odiei ouvir. Aquela mesma sensação que todo mundo tem quando ouve a própria
voz gravada, porque era a minha voz. Mas ela não estava gravada, e sim falando
comigo. Desliguei a chamada em um reflexo rápido e meu coração começou a
palpitar. Certamente, eu havia discado o numero errado e algum maluco atendeu,
que tinha voz extremamente parecida com a minha. Minhas mãos tremiam enquanto
eu ousava checar o numero que eu havia discado, e quase deixei o celular cair
no chão quando, depois de conferir mais de quinze vezes, era o meu próprio
numero que havia ali.
Soltei um grito de pânico quando meu celular tocou logo
em seguida e o mesmo caiu de minha mão tremula. O apanhei com um nó na garganta
e cai sentado no sofá, com as pernas bambas, quando conferi o numero que me
ligava. O meu. O meu próprio numero estava me ligando e eu não sabia o que
diabos estava acontecendo.
Atendi e o levei levemente a meu ouvido, tremendo e
ofegante. “Porque você me ligou?! Você ainda se importa?! Eu estou morto, sua
cria de vermes!” Minha voz do outro lado da linha rosnava. Ela era insana, mas
não havia nenhuma duvida que era minha.
Desliguei meu celular com rapidez. Caminhei
apressadamente, olhando para os lados, para meu quarto. Fechei a porta
rapidamente com um frio me subindo a espinha. Aquele ofego não me abandonava, e
eu não parava de suar, mesmo fazendo frio. Demorei demasiadamente para pegar no
sono, e quando o mesmo chegou, ele me trouxe aquela voz que era minha, mas de
alguma forma era um rosnado enlouquecido. Deus do céu, o que diabos era aquilo?
Acordei cansado, bastante irritado e com um pouco de dor
de cabeça. Quando a razão voltou para mim, percebi que talvez eu tivesse bebido
mais do que havia imaginado na noite anterior, e aquilo tudo foi fruto da
intoxicação. Dei graças a Deus por ser domingo, pois achava que era segunda.
Caminhei até a sala e meu telefone estava em cima do sofá. Não quis olhar para
ele, e fui até o banheiro tomar banho. Uma vez meu padrinho havia me dito que
não tinha nada melhor para curar a ressaca do que um bom banho gelado, e de
fato ele tinha razão, porque eu odiava banho gelado. Fiquei dois minutos com a
água fria caindo em meu corpo, então troquei para quente.
Tive a leve impressão de ter dormido no banho, me
deixando respirar o vapor quente da água. Senti como se a gravidade da Terra
estivesse comprimindo meu corpo, que tudo ao meu redor era gigante e eu era
apenas uma formiga. Por um momento eu esqueci de mim mesmo, até que eu senti
aquele grasnado em meu ouvido. “EU ESTOU MORTO, SUA CRIA DE VERMES!” Isso me
fez voltar à realidade e percebi que o chuveiro havia esquentado muito. O
desliguei rapidamente e me sentei no chão. Minhas costas ardiam muito e eu não
parava de ofegar. Sai do banheiro e fui até a sala. Com um pouco de hesitação,
eu apanhei meu celular e o liguei. Enquanto o mesmo iniciava, eu decidir
assistir um pouco de televisão. Eu só a tinha para jogar vídeo-game, mas
naquele momento eu queria que tivesse algum barulho naquele apartamento.
Meus amigos haviam chegado em segurança em casa, e eu
estava navegando nas redes sociais. Às vezes uma tristeza e auto piedade me
invadiam quando eu me sentia bem fazendo essas coisas. Parecia que era só isso
que me dava prazer de verdade, e isso era ridículo. Coisas tão medíocres e
fúteis me eram motivo de alegria. Lembrei que dia era, e percebi que
provavelmente viria alguns primos meus para a casa de meus pais para comer um
churrasco. Eu sentia muita falta desses momentos que eu era feliz e não sabia,
e me corria de remorso para ir até lá. Acredito que eu seria bem vindo em suas
mesa, mas eu tinha vergonha de aparecer até lá. Parte de mim queria que alguém
se importasse comigo, que ligassem para mim e me chamassem para ir até lá.
O telefone tocou e me escapou um grito.
Nem mesmo vi quem me ligava, apenas o atendi. Meu sangue
gelou quando aquele mesmo rosnado que (era) lembrava a minha voz ria do outro
lado da linha. “Acho que nem vermes gostariam de se banquetear com a sua carne
podre, seu resto de lixo.” Gritei e perguntei o que aquele imbecil queria.
Outra risada seca. “Eu quero me deleitar com seu sofrimento. Não vê que estou
morto?” Retruquei dizendo que se encontrasse ele, provavelmente ele estaria
morto, mas recebi outra risada como resposta. “Pode apostar que fará isso, cria
de vermes! Não vê que estou morto?”
Desliguei o telefone e pus as duas mãos na testa. Eu
peguei e fui até o registro de chamadas e tentei bloquear aquele numero, mas
daí veio uma mensagem dizendo que eu não podia bloquear o próprio numero.
Atirei o celular no sofá e me sentei logo depois.
Naquele mesmo dia, meu celular tocara mais duas vezes,
mas não ousei atender. Podia ser até mesmo o telefonema que eu sempre quis que
meus pais fizessem, mas eu não tinha coragem de pegar o celular. Pude até mesmo
ter tido um momento de coragem insana para confrontar aquele maluco, mas na
verdade eu estava apavorado. Como que aquele infeliz havia conseguido me deixar
tão perturbado assim? Não tinha certeza, mas aquela pergunta que ele sempre
fazia me dava calafrios só de pensar. “Não vê que estou morto?” Era o que ele
sempre dizia. O que queria dizer com isso? Deus do céu, eu estou levando a
serio um maluco e conseguiu de alguma forma clonar meu telefone.
Os dias seguintes foram bastante perturbadores. As vezes,
quando eu estava no meio do trabalho com o celular na mão, navegando em alguma
rede sócia ou algo assim, meu sangue gelava e engolia um grito quando o
telefone tocava. E mais ainda quando eu via qual numero que era. As vezes, eu
atendia e ouvia aquela mesma voz. Normalmente nós não gostamos da nossa própria
voz gravada, isso é normal de qualquer pessoa, mas imagine começar a ter pânico
dela? Eu descobrira isso quando resolvi aceitar um convite de sair com meus
amigos e resolvemos gravar um vídeo. Não havia duvidas, aquele infeliz tinha a
minha voz, e além do leve desconforto de ouvi-la na gravação, meu corpo se
arrepiou todo também.
Por conta disso, eu acabei por começar a ficar um pouco
mais quieto. Normalmente eu gostava de conversar com as pessoas quando tinha a
oportunidade, mas isso foi mudando. Lembro-me que uma mulher de mais ou menos a
minha idade tentou puxar assunto comigo no restaurante onde almoçava. Tinha
cabelos castanhos volumosos e olhos cinzentos. No começo, consegui manter um
bom assunto, até mesmo esquecer que eu tinha pavor de minha própria voz, mas ai
então o maldito telefone tocou. Verifiquei o numero e tudo começou a mudar.
Fiquei inquieto, um pouco defensivo e até mesmo grosso com a mulher. A mulher
levou na brincadeira na hora, mas nunca mais quis falar comigo.
Mais ou menos nessa mesma época, eu comecei a me afastar
dos poucos amigos que eu tinha. As vezes eu me encontrava com eles, mas sempre
acabava sendo um inferno. Nunca fui um homem de discutir, mas comecei a ser.
Aos poucos, fui me tornando uma pessoa bastante desagradável de se conviver e
fui sendo deixado de lado durante as vezes que meus amigos saiam. Eu podia
muito bem ir até lá e pedir desculpas para eles, e provavelmente eles
aceitariam, mas eu sempre tive muita auto piedade. Eu queria que eles viessem
até mim e perguntassem o que estava havendo, queria de certa forma ser cuidado,
mas nada disso aconteceu.
Certa noite, eu voltava para casa mais cedo. Percebi que
era sexta feira e provavelmente eles estavam reunidos na casa de alguém, e isso
me deu uma dor no coração. Também lembrei de meus pais, que naquele momento
estariam tomando uma sopa maravilhosa feita pela minha mãe e eu poderia estar
lá com eles, mas estaria em casa, comendo alguma porcaria industrializada e
vivendo a vida dos outros através de uma merda de uma rede social.
Ao chegar em casa, eu notei que as luzes da sala estavam
ligadas, mas eu tinha certeza que as luzes estavam desligadas quando sai.
Saquei e abri meu canivete. Adentrei o corredor a passos lentos e cautelosos,
até que eu vi alguém no sofá. Eu perdi o ar quando vi aquilo, e minhas pernas
ficaram bambas. Aquele homem tinha exatamente a minha altura, os mesmos cabelos
castanhos volumosos, vestia-se exatamente do jeito que eu me vestia e usava os
mesmos sapatos. A única diferença era que aquela figura tinha uma pele muito
mais pálida que a minha e olheiras muito mais profundas. Parecia um fantasma de
mim mesmo, uma visão de mim mesmo depois da morte, mas ali estava aquela coisa
diante de mim.
Ele abriu um sorriso psicótico para mim. Nunca gostei de
mim sorrindo, pois eu achava minha boca feia e meus dentes um pouco tortos, mas
aquela coisa não se importava. Ele sorria como um maníaco, e isso me deu o
maior de todos os pânicos, pois aquele de certa forma era meu sorriso também.
Indaguei quem era, e sua resposta veio acompanhada de uma risada aguda e
rasgada. “As vezes é bastante difícil de saber quem nós somos. Não vê que estou
morto?” Aquele cara certamente tinha a mesma voz daquela pessoa que me ligava,
e certamente era a minha voz. Aquele seria um Duplo? Não, isso não existe.
Aquela coisa parecia mais uma visão de mim mesmo.
Perguntei como ele invadira meu apartamento, e ele dessa
vez se deitou no sofá de tanto rir. Aquilo me deixava furioso e apavorado.
“Essa é minha casa também, sua cria de vermes. Não vê que estou morto?”
Indaguei um pouco gago, o que ele queria dizer com aquilo, e então sua
expressão se tornou seria.
“Isso.”
Então percebi duas coisas que não haviam antes na minha
sala. Uma delas era uma corda branca, com um nó de forca na ponta, presa e
pendurada pelo ventilador de teto. Outra delas, era a pequena escada de alumínio
que eu guardava na despensa. Ele subiu degrau por degrau, bem devagar e com o
seu olhar serio para mim. Pensei em impedir, mas aquilo tudo parecia surreal
demais para ser verdade. Laçou o pescoço no nó de forca e se deixou cair. Virei
o rosto rapidamente, mas não pude deixar de ouvir o estralo de seu pescoço se
quebrando. Nessa altura, eu já não sabia mais o que fazer. Meu pavor era imenso
e achei até mesmo que tinha molhado as calças.
Lentamente e com o corpo tremulo, virei o rosto para ver
o cadáver pendurado na minha sala, mas a verdade é que havia e não havia um
corpo ali. Fui até a minha despensa e vi que minha escadinha estava ali ainda,
no mesmo lugar onde eu havia deixado. Quando retornei para a sala, o corpo
desapareceu por completo. Eu não sabia mais o que estava acontecendo e decidi
ir dormir, mesmo sendo demasiado cedo.
Diferente dos últimos dias, esse meu sono fora bastante
tranqüilo e eu acordei de certa forma revigorado, e não mais esgotado do que
antes. Eu não sentia mais a auto piedade e tristeza de antes, parecia que tudo
tinha sumido em um passe de mágica. Meu telefone não tocou pela manhã toda e eu
estava com vontade de fazer as coisas. Algo dentro de mim estava diferente, eu
não sabia o que era, mas tinha.
Procurei meus amigos e pedi desculpas pelas minhas
atitudes ultimamente. Como eu havia imaginado, eles aceitaram e saímos naquela
mesma noite. Acredito que não fui só eu que percebera isso, mas eu não era mais
a mesma pessoa. Normalmente eu era um cara bastante tímido nas baladas, tinha
um pouco de receio de ir até as mulheres, mas naquela noite foi diferente. Eu
estava com uma atitude que eu não estava reconhecendo e todos meus amigos
ficaram surpresos da quantidade de mulheres que eu fiquei.
No dia seguinte, liguei para meus pais. Eles me
convidaram para ir até a minha antiga casa e comer um churrasco. Alguns dos
meus parentes estavam lá e foi bastante divertido. Todos estavam notando minha
mudança repentina.
No dia seguinte, meu desempenho no trabalho fora muito
melhor do que nos últimos dias. Eu encontrei no restaurante aquela mesma mulher
de antes e comecei a conversar com ela. Por mais que eu gostasse de falar, eu
tinha bastante dificuldade de conseguir manter um assunto interessante com as
mulheres, mas dessa vez foi diferente. Eu não consegui contar quantas vezes
consegui fazê-la rir, como eu tinha habilidade para dizer o certo na hora
certa, e tudo com uma naturalidade imensa.
De certa forma, eu estava bastante feliz com isso que
estava acontecendo na minha vida, mas na semana seguinte tudo começou a ficar
estranho.
Começou quando me encontrava com meus amigos, seja na
balada ou na casa de alguém. Eu comecei a exagerar bastante na bebida e eu
começara a me transformar em uma pessoa, não desagradável como antes, nem
extremamente agradável como eu estava, mas sim uma pessoa bastante impulsiva e
que não pensava muito no que dizia. Com isso, aos poucos eles começaram a ter
medo de mim, e tinham até certo receio de me terem por perto. Quando me
relatavam o que eu havia dito na noite anterior, eu não conseguia achar aquilo
ruim, tanto pelo fato de saber que eu estava alcoolizado, quanto pelo fato de
eu gostar daquelas coisas que eu havia dito. Os relatos eram que eu argumentava
que quando as pessoas iam para a balada, na verdade era tudo um grande rebanho
de gado e nós, pessoa mais superiores, estávamos ali justamente para se
banquetear da mais saborosa carne que o mundo podia oferecer. Outra coisa era
sobre as redes sociais, pois eu dizia que todas as pessoas que expunham suas
vidas na rede, como se pendurassem todos os órgãos internos em uma vitrine, na
verdade estavam quase colando um aviso em suas testas para que um terrorista
explodisse sua vida miserável.
Eu não achava aquilo tudo ruim, era apenas o que eu
pensava das pessoas, mas todos estavam bastante apavorados. O que lhes deixava
com medo era o fato de que eu falava tudo com a maior naturalidade de todas,
como se eu pensasse aquilo de verdade, e de fato pensava. Dessa vez, eles não
chegaram a se afastar de mim, mas eu sentia o seu continuo desconforto quando
soltava a língua, e isso me deixava muito irritado, e isso aos poucos foi se
transformando em ódio.
Eu havia dito que no começo eu havia me afastado de meus
pais, mas naquele momento quem estava se afastando era eles. Eu na hora do
churrasco, minha comida preferida, dizia que seres inferiores, como bois,
porcos e humanos, deviam sempre virar comida para os mais superiores, como eu
me considerava. Também cheguei a comentar algo de como a vida era gerada de uma
forma nojenta, e era difícil de imaginar que viemos de um ato sexual. As vezes,
me recusava a acreditar que para mim nascer, meu pai teve que comer minha mãe.
Eu achava que pessoas superiores deviam ser geradas de outra forma, e não de
uma maneira tão banal.
Aquela moça do restaurante, como era muito educada, não
me respondera com grosseria quando eu havia dito que todas aquelas pessoas ali
em volta eram repulsivas, e que nós éramos gerados de uma maneira nojenta e asquerosa.
A partir daquele meu relato, ela começara a me evitar mesmo quando eu tentava
procurá-la, e isso me dava muito ódio. Eu odiava ser ignorado e aquela
vagabunda imunda, que ia para a balada ser rebanho de consumo, estava me
evitando. Isso era um absurdo, eu não podia ser ignorado. Chegou ao ponto que
ela ameaçou chamar a policia e eu rira com desprezo.
Depois disso, nem mesmo meus amigos conseguiram agüentar
muito tempo meus assuntos diabólicos e repulsivos, e eu não agüentava mais suas
expressões de medo que brotavam em seus rostos quando me sentava na mesa. Era
algo ridículo sentir medo, e era mais ainda eles me ignorarem. Eu não seria
ignorado e não sentiria medo como vermes que são!
Em um momento de filosofia, quando estava sozinho em meu
apartamento, percebi que não sentia medo de nada. Até que pensei se eu teria
algum de morrer, e logo veio a resposta: “Claro que não”, respondi para mim
mesmo com uma risada aguda. Mas essa semente de duvida brotava em minha mente,
pois ainda não tinha certeza. Enfureci-me com minha própria duvida e decidi que
iria acabar com ela. Fui até a despensa e peguei uma corda e uma escadinha de
alumínio. Fiz um nó de forca e o pendurei em meu ventilador da sala, de maneira
firme.
Por um momento, me sentei no sofá e comecei a tremer. Eu
ainda tinha essa duvida em minha mente, e estava apavorado de certa forma. Me
estapeei varias vezes, com ódio de minha pessoa por sentir isso. Não era
admissível que eu sentisse algum medo, eu não era um verme como eles.
Nesse momento de fúria e medo, subi as escadas e lacei
meu pescoço. Varias vezes pensei em descer o mais depressa possível, não
querendo fazer isso, mas meu ódio era imenso. Quanto mais eu sentia medo, mais
fúria crescia, e mais coragem eu criava para pular.
Com um grito rasgado e insano, tombei da escada.
Senti meu pescoço se quebrar e minha respiração trancar
antes de minha vida se esvair do meu corpo. De fato, você sentia alguma coisa
quando morria, mas não era nada que não se pudesse agüentar. Era bem rápido,
como tirar sangue.
Eu não sei como, mas depois de algum tempo eu acordei
suspenso na sala. Minha visão era levemente turva, mas logo se adaptou a
luminosidade. Senti ainda minha respiração trancada e o pescoço partido, mas
nenhuma dor. Comecei a rir comigo mesmo, ainda suspenso, enquanto tentava
descer. Me amaldiçoei por ter atado muito bem a corda no ventilador, pois
precisei de vários e árduos minutos para conseguir me soltar.
Quando cai no chão, eu ouvi um som bastante familiar. Era
o som de meu celular tocando na minha estante. Tirei a corda de meu pescoço e
caminhei até o aparelho, rindo baixo mas histericamente.
“O que foi?! Não
vê que estou morto?!”
Ouvi o telefone da outra linha ser
desligado rapidamente. Comecei a rir comigo mesmo enquanto procurava o numero
no registro de chamadas e comecei a discá-lo novamente.